ISSO É UM DRAFT DE UM LIVRO DE INTRODUÇÃO HISTÓRICA À FILOSOFIA QUE ESTÁ SENDO ESCRITO. NATURALMENTE, CONTÉM ERROS E IMPRECISÕES.
I
OS PRÉ-SOCRÁTICOS E A NATUREZA DA FILOSOFIA
A filosofia ocidental nasceu na Grécia antiga, cerca de 500 anos antes
de Cristo. Há quem diga que a filosofia é muito mais antiga. Para alguns ela
nasceu na China há cerca de 1000 anos antes de Cristo, com o I Ching, o
chamado Livro das Mutações, que foi um livro de adivinhação e de sabedoria
oracular redigido em muitas camadas por muitos autores durante diversas eras.
Para outros ela teria nascido na Índia há cerca de 1500 anos antes de Cristo,
originando um grupo de tradições filosóficas e religiosas cujo principal
objetivo era orientar a vida humana.
A filosofia, tanto ocidental
quanto a oriental, teve origens místicas. Como resultado disso temos uma
desagradável confusão entre filosofia e sabedoria de vida, que mesmo hoje é comum
entre leigos. Confunde-se filosofia com alguma disciplina mística, quase
religiosa, enquanto a filosofia acadêmica, como resultado de uma especulação
coletiva de comunidades de conhecedores sedimentada sobre uma tradição milenar,
pouco tem a ver com sabedoria de vida, tendo se tornado hoje uma investigação
aparentemente esotérica e inacessível ao público leigo.
É interessante lembrar nesse
contexto a opinião de Hegel, para quem a filosofia, tal como hoje a concebemos,
se originou realmente na Grécia antiga e não no oriente. A razão por ele aventada
é que a filosofia oriental não se diferenciava suficientemente da religião. Com
efeito, essa filosofia se encontrava mais próxima de uma forma de sabedoria, de
um aconselhamento sobre o bem-viver, de uma forma elevada de autoajuda, enquanto
a filosofia nascida com os filósofos pré-socráticos se ocupava de argumentos
críticos desenvolvidos por pessoas que conheciam a ciência da época e que
buscavam substituir o legado do pensamento mitológico por um questionamento
especulativo que prefigurava o pensamento científico. A opinião de Hegel pode
ser exagerada, mas há nela algo de verdadeiro.
Para entender o nascimento da
filosofia ocidental precisamos considerar o trabalho dos filósofos
pré-socráticos, assim chamados por terem aparecido antes de Sócrates e por
terem preocupações filosóficas cosmológicas, muito diversas das preocupações
morais de Sócrates. Eles foram os primeiros a terem surgido na Grécia, em um
período que vai do século VI ao século V antes de Cristo. O principal objetivo
desses filósofos era encontrar um princípio originador e sustentador de tudo o
que existe, a assim chamada arché. Esse princípio pertencia à natureza (physis),
daí o naturalismo dos pré-socráticos. Eles eram bons cientistas, conheciam
matemática, geometria, engenharia, astronomia. Por isso mesmo, o pensamento
deles, embora incluindo elementos religiosos, caracterizava-se por um
rompimento com o pensamento mitológico que os antecedeu. Seu projeto comum era
o de substituir as explicações mitológicas da natureza e de suas anomalias por
princípios especulativos que pelo menos tivessem a forma de princípios
científicos, uma vez que em tais domínios a ciência como ciência era
impossível.
1
Os milesianos. O primeiro pré-socrático foi o
filósofo jônico Tales de Mileto (647-524 a.C.). Ele também foi um astrônomo e
matemático, tendo previsto um eclipse solar no ano de 585 a.C. Ele acreditava
que a água fosse o princípio de todas as coisas, posto que a vida nasce das
coisas úmidas. O princípio água coincidia com o divino, donde tudo se encontra
pleno de deuses.
Para Nietzsche, Tales foi a
primeira pessoa a ter a ideia de uma unidade na multiplicidade de tudo o que
existe, a intuição original de que tudo é um, de que o universo possui
uma unidade constitutiva e que nós podemos ter, em princípio, acesso cognitivo a
ela. O esforço no sentido de
obter uma compreensão unificadora de todas as coisas foi característica da
filosofia pré-socrática e também dos grandes sistemas da tradição filosófica
ocidental.
A busca da unidade na
multiplicidade tem sido em nossa época reforçada através da noção de consiliência,
que consiste na assunção da existência de uma unidade da realidade. Esse pressuposto é essencial à toda
investigação. Ele faz com que através da investigação nós possamos ter como
princípio orientador a sugestão de que as diferentes ideias, caso verdadeiras,
possam se complementar umas às outras, reforçando-se assim em sua
plausibilidade.
Tales foi sucedido por outros dois
filósofos Jônicos mais jovens do que ele: Anaximandro e Anaxímenes. Anaximandro
sugeriu que o mundo fosse resultado de um elemento indefinido ou, mais
literalmente, do Ápeiron, que se traduz como o ilimitado. Essa é
uma ideia importante por tornar o princípio explicativo das coisas, pela
primeira vez na história da filosofia, algo não perceptível aos sentidos.
Anaximandro (610-546 a.C.) foi
responsável pela ideia de que a terra é um cilindro suspenso entre os Astros,
que não cai nem para um lado nem para outro, pelo equilíbrio das forças. O
filósofo da ciência Karl Popper viu nisso uma antecipação do conceito de
inércia e mesmo o da gravitação. A filosofia dos pré-socráticos atua entre a
mitologia e a ciência e, às vezes, como uma clara antecipação da última.
Anaxímenes (599-524 a.C.), por
sua vez, sugeriu que o princípio originador e constitutivo fosse o ar. Afinal,
não podemos permanecer vivos sem respirarmos. E disso ele supôs que o mundo
inteiro, tal como um ser vivo, também fosse dependente da existência do ar para
subsistir. Como explicou em um dos fragmentos:
Como nossa alma, que é ar, nos governa e mantem
unidos, assim também o vento e o ar, que são o mesmo, mantêm unido o universo
inteiro.
Anaxágoras (500-428 a.C.), nascido na Jônia, foi outro importante
filósofo pré-socrático. Ele é visto como o introdutor do conceito de mente em
filosofia. Ele entendia a Arché como sendo o nous, ou seja, a
mente ou pensamento. Para ele a mente era algo que embora fosse material era
absolutamente puro:
A mais fina e pura de todas as coisas, que possui todo
o conhecimento de todas as coisas e o maior poder.
A mente seria uma força infinita que, agindo sobre a matéria informe, dá
origem a tudo o que existe nesse mundo.
Anaxágoras foi também o defensor
da versão pré-socrática da teoria do Big-Bang. Segundo ele, no começo todo o
universo se encontrava comprimido em um átomo primordial:
Todas as coisas estavam juntas, infinitamente pequenas
em número e pequenez, pois o pequeno era infinitamente pequeno. E como estava
tudo unido nada era reconhecível devido à pequenez.
Para Anaxágoras esse ínfimo átomo era como que um plasma indiviso, posto
que misturava tudo no infinitamente pequeno, fazendo com que nada mais fosse
distinguível. Esse átomo primordial começou a girar com força cada vez maior,
jogando para fora de si o éter e o ar e formando as estrelas, o sol e a lua.
Essa rotação fez com que os elementos se separassem, mas isso nunca aconteceu
por completo, de modo que cada coisa preserva em si algo de todas as demais
(atualmente dizemos que também possuímos em nossos corpos átomos das estrelas).
Essa expansão do universo existe hoje e continuará existindo sempre. E com isso
também outros mundos semelhantes ao nosso podem ter sido gerados, com sol e lua
próprios e habitados por criaturas tão inteligentes quanto nós.
Em meio a tudo isso a única coisa que continua
a mesma e que tudo move é a mente. Nesse último ponto seu Big-Bang difere do
nosso, uma vez que preferimos substituir seu conceito animista de mente pelo de
leis fundamentais da natureza.
2
Princípios múltiplos. Outros filósofos pré-socráticos entenderam a arché como sendo
múltipla. Assim, os seguidores de Pitágoras, tendo percebido que tudo na
natureza possuía quantidades e formas, concluiu que os números eram o princípio
fundamentador do universo. Eles seriam o fundamento, começando do número um,
que é base da aritmética, e do ponto, que é base da geometria. Com base na
matemática os filósofos pitagóricos formaram uma seita que objetivava explicar
não só o universo, mas também a vida humana. Eles acreditavam na doutrina da
transmigração das almas que influenciou o pensamento de Platão.
Também acreditavam em
princípios múltiplos os filósofos atomistas, que foram Leucipo e seu discípulo Demócrito
(460-370 a.C.), do qual restaram muitos fragmentos, além de Epicuro (341-270
a.C.), um filósofo grego da época helenista. Para Demócrito o mundo é constituído
do que ele chamou de átomos, que são partículas invisíveis, indivisíveis, com
solidez e impenetrabilidade, tamanhos e formas diversas e infinitos em número.
Eles constituem todas as coisas visíveis. Afora os átomos, só o que existe é o espaço
ou vazio. Os átomos se movem e se chocam uns contra os outros segundo leis
deterministas. Como consequência, os atomistas foram os primeiros filósofos distintamente
materialistas. Mas isso não os impedia de acreditarem no espírito, pois as
almas humanas poderiam ser entendidas como constituídas de átomos extremamente
sutis. Assim, quando sonhamos com um antepassado morto pode ser porque os
átomos constitutivos de suas almas penetraram em nossas cabeças enquanto
estávamos dormindo, interagido com os átomos de nossas almas.
É importante notar que os
atomistas estavam antecipando a possibilidade de descobertas científicas que
ocorreram mais de dois mil anos depois. Elas foram o que em sua memória
decidimos chamar de átomos, que compõem a tabela periódica, mais tarde
substituídos por partículas subatômicas indivisíveis chamadas de elétrons,
quarks, gluons e fótons. Mesmo que eles de maneira alguma pudessem antecipar a
física das partículas tal como ela é hoje estabelecida, eles anteciparam a
ideia de que o universo deveria ser formado por partículas invisíveis discretas
móveis e possuidoras de massa. Não deixa de ser impressionante que após mais de
dois mil anos a ciência tenha demonstrado que as especulações dos atomistas
eram corretas.
Além das especulações
cosmológicas, a maior parte dos fragmentos deixados por Demócrito foram instrutivos
ditames morais, muitos deles ainda hoje aplicáveis. Por exemplo:
É esforçar-se em vão querer trazer entendimento a quem acredita tê-lo.
Os insensatos tornam-se razoáveis pela desgraça.
A beleza do corpo é animalesca se não for dignificada pelo entendimento.
Quem procura o bem atinge-o com dificuldade. O mal, porém, atinge mesmo
aquele que não o procura.
Ao homem sábio todas as terras são acessíveis, pois a pátria de uma alma
virtuosa é o universo.
Em verdade, porém, nada sabemos, pois no abismo encontra-se a verdade.
É curioso notar que esses dísticos valem hoje tanto quanto valeram há 2.500
anos atrás. Parece que o ser humano em certos aspectos pouco ou nada aprendeu
com os erros de seus antepassados.
Um outro pré-socrático
pluralista que merece ser citado foi Empédocles de Agrigento (florescido em 450
a.C.), que se considerava um deus e que segundo a lenda deu fim a sua vida atirando-se
na cratera do Etna. Ele foi um precursor de Darwin ao sugerir especulativamente
que as espécies se desenvolvem através de uma luta na qual seres que por acaso
nascem com as mais diversas características entram em disputa de modo que só os
mais aptos sobrevivem. Para ele os seres vivos se originaram do mar e o ser
humano em tempos primevos deveria ser muito diferente, considerando que hoje
ele precisa de anos de completa dependência dos pais para poder sobreviver por
si mesmos, diversamente dos animais.
Ele foi o inventor da ideia de
que o universo é constituído por quatro elementos (raízes) que ele encontrou em
filósofos anteriores. Esses elementos originários são a água (Tales), o ar
(Anaxímenes), o fogo (Heráclito) e a terra (Xenófanes). Eles são imutáveis e
combinam-se uns aos outros de modo a formas o universo visível. Essa teoria foi
aceita até o século XVII, quando químicos como Robert Boyle fizeram-na cair por
terra.
Para Empédocles atuam sobre os
quatro elementos duas forças físicas, que ele chamou de harmonia (o amor) e
discórdia (o ódio). A ação alternada dessas duas forças faz com que o universo
sofra um processo cíclico de mudança através do qual de tempos em tempos tudo
se repete. Assim, no início de um ciclo os elementos se encontram todos
perfeitamente misturados, os objetos não existem e a força imperante é a da
harmonia em toda a esfera do mundo, que forma um todo homogêneo. Mas a força da
discórdia logo penetra na esfera do mundo e começa a agir separando os
elementos e formando os objetos hoje conhecidos, até quando terra, ar, água e
fogo se tornam completamente separados. Nesse ponto a força da harmonia começa
a agir novamente, misturando pouco a pouco outra vez os elementos, até o
retorno ao estágio inicial de perfeição, quando inicia-se um novo ciclo pela
força da discórdia... Em seu tempo Empédocles acreditava estarmos em um estágio
intermediário, em que as forças da discórdia agem de maneira cada vez efetiva.
A doutrina cíclica de
Empédocles foi sugerida pela observação dos acontecimentos cíclicos no mundo. As
estações do ano são cíclicas: vemos as árvores florescerem e darem frutos na
primavera e no verão, para então perderem as suas folhas no outono secando no
inverno, só para florescerem de novo no próximo ano. Os seres vivos são gerados
sem forma, crescendo e se diferenciando até envelhecer e, na morte, tornam-se
outra vez matéria informe.
A ideia de um mundo cíclico foi
famosamente reapresentada por Nietzsche sob a forma do que ele chamou de o
eterno retorno. Mas ele o entendia como um experimento psicológico para testar
a autenticidade de nossas atitudes perante a vida. Para tal ele imaginou que
as nossas vidas devessem se repetir identicamente nos mais ínfimos detalhes um
número infinito de vezes. Se alguém aprovasse o eterno retorno, querendo que
cada experiência de sua vida, cada prazer e desprazer, cada pensamento e decisão,
retornasse outra vez e assim infinitamente, essa seria a prova de uma atitude
absolutamente afirmativa diante de sua existência.
Finalmente, a ideia de um
mundo cíclico nada tem assim de tão absurda. Ela tem sido presente na
cosmologia contemporânea: para alguns astrofísicos o Big-Bang é para ser
seguido pelo Big-Crunch e assim sucessivamente. Existe, pois, até mesmo
uma versão atual daquilo que Empédocles propôs de forma puramente especulativa.
3
Heráclito. Quero me deter em Heráclito e Parmênides, que foram os mais impressionantes
filósofos pré-socráticos. Na antiguidade eles eram considerados opostos, pois
Heráclito enfatizava a mudança e Parmênides a imobilidade. Mas veremos que nem
por isso eles se opõem verdadeiramente, posto que por detrás da mudança
Heráclito enfatizava a unidade da razão, que pode ser comparada ao Ser de
Parmênides.
Heráclito (florescimento 500
a.C.), como Nietzsche, Wittgenstein, e ainda outros, foi um filósofo que se
exprimia por meio de aforismos. Muitos desses aforismos são profundos e nos
dizem algo ainda hoje. Eis alguns deles:
A harmonia
invisível é mais forte do que a visível.
O que está em cima
é idêntico ao que está embaixo.
A natureza ama
ocultar-se.
Tudo se faz por
contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia (como a do arco e
da lira).
A harmonia
invisível é mais forte que a visível.
Jamais encontrarás os confins da alma, tão profundo é o seu logos.
Heráclito pertencia à nobreza hefésia. Foi um pensador de índole
aristocrática, misantropo, melancólico, mas profundo e poético. Expressava-se
por meio de aforismos de tom profético. Seus dísticos eram intencionalmente
obscuros, de modo a não ser falsamente compreendido por mentes superficiais. Ele
desdenhava o homem comum, para ele prisioneiro da opinião e incapaz de agir
racionalmente.
Heráclito era um elitista no
que concerne aos seres humanos. Embora a razão seja um bem comum a todos, para ele
poucos fazem uso dela:
A despeito do logos ser comum a todos, o vulgo vive
como se cada um tivesse um entendimento particular; não sabe nem escutar nem
falar.
As opiniões dos homens são jogos de crianças.
Heráclito, ao que parece, era também um filósofo capaz de odiar em
medida pouco comum, como demonstram seus aforismos desdenhosos acerca de seus
concidadãos. Faço aqui apenas uma breve seleção deles:
Os porcos preferem
a lama à água limpa.
Os cães ladram
para o que desconhecem.
Tudo o que rasteja
merece ser chicoteado.
Um para mim vale mil se for o melhor.
Asnos preferem a grama ao ouro.
Se você quiser ofender alguém gravemente sem precisar lançar mão de
palavrões, basta se lembrar de algum desses aforismos.
Heráclito foi o filósofo do
conflito. Para ele o conflito entre os opostos é necessário, pois é dele que
nasce a mais bela harmonia. Ele considerava as guerras necessárias:
A Guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei;
de uns fez deuses, de outros homens; de uns escravos, de outros homens livres.
A Guerra como solução de conflitos era parte essencial do mundo antigo. Por
exemplo, foi graças à genialidade e astúcia de um general grego, Temístocles,
que a Grécia não foi escravizada pelos persas, permitindo a continuação da
produção cultural grega com o aparecimento de Platão e Aristóteles. Hegel era
um admirador de Heráclito. A ideia hegeliana de que a razão humana é apenas um
momento da razão universal parece ter sua origem em Heráclito.
Mas não seria a necessidade da
guerra uma ideia ultrapassada, posto que esperamos que no futuro as guerras
deixem de existir? Essa seria uma maneira bastante superficial de entendermos o
que Heráclito quis dizer. Mesmo que as guerras deixem de existir, os conflitos
entres grupos humanos continuarão existindo de forma mais elevada, por exemplo,
como conflito de influências e ideias. Se Heráclito estivesse aqui entre nós
ele diria que a sua ideia de guerra, agora entendida de forma metafórica como
qualquer forma de convulsão social, continuará sempre existindo, dado que é
inerente à vida humana em sociedade.
Outra ideia iconoclasta de
Heráclito é a de que para que exista o bem é necessário que exista o mal, para
que exista a justiça é necessário que também exista a injustiça. Essas
oposições são interdependentes, o que deve desfazer a ilusão escapista de que
possa haver um mundo inteiramente justo e inteiramente bom, ao menos dentro da
perspectiva humana. Essa ideia vale para a sociedade e também para os
indivíduos. Para Heráclito o ser humano é constitutivamente aprisionado ao
conflito, de modo que a possibilidade de que ele se eleve à afirmação de uma
existência para além do conflito é enganosa. De onde se pode concluir que seria
melhor para ele que ele aceitasse o conflito e tentasse superá-lo
conscientemente pela ação ou pela reflexão – aqui um ponto de contato entre
Heráclito e Nietzsche.
Faço uma pausa para lembrar um
livro: O visconde partido ao meio de Ítalo Calvino. Na estória, o
visconde Medardo di Terralba é uma pessoa que na Guerra contra os mouros foi partido
em duas metades por uma bala de canhão. Os cirurgiões conseguiram resolver o
problema separando as metades de modo a formar duas pessoas, dois viscondes.
Mas eles incorreram em um erro, pois um deles herdou a parte má do visconde,
enquanto o outro herdou a parte boa. Aquele que herdou a parte má se
transformou em um psicopata que se divertia em destruir tudo o que era vivo,
belo ou bom. Já o que herdou a parte boa era bom demais. Era ingênuo e esquecia
de si mesmo. Sua namorada logo se cansou dele por considerá-lo tedioso. A
estória termina quando as duas metades se reencontram e entram em duelo.
Curiosamente, durante a luta elas pareciam querer aproximar-se uma da outra.
Feridos, eles caem outra vez nas mãos de um cirurgião competente, que reúne as duas
partes e faz reviver o visconde original. Sem grande surpresa esse novo visconde
passa a ser uma pessoa que age corretamente, na justa medida, ciente outra vez
dos extremos volitivos do bem e do mal que deve manter sob o controle de sua
consciência.
Para Heráclito a Arché
não era a água, nem o ar, nem a terra, mas o fogo, no qual outros elementos se
desfazem. Segundo ele:
Este mundo sempre foi, é agora e sempre será o sempre vivente
fogo, com medidas certas de seu acender e medidas certas do seu apagar.
Para ele sem o conflito o mundo se desfaria em nada. Ele não foi só o
filósofo do conflito, mas também do movimento, da mudança. Como o fogo, tudo se
encontra em movimento, embora preso a medidas determinadas por leis. Também a
vida é tensão, conflito, mudança incessante:
Tu não podes atravessar duas vezes o mesmo rio, pois
novas águas correm sempre por ele.
Mas não entende Heráclito quem acredita que ele queria reduzir tudo ao
movimento e ao conflito desordenado, pois sob o conflito de oposições, existe a
ordem oculta da natureza, imposta pelas leis da razão (o logos) e
alcançável através do pensamento. Para ele é a razão que secretamente domina o
mundo. Heráclito era um panteísta que acreditava que Deus se encontra em todas
as coisas. Mas esse Deus, o Uno, era para ele a própria razão que revela a
identidade na diferença, a unidade no todo e a medida de cada coisa. A razão,
disse ele, é comum a todos, mas o vulgo não faz uso dela, nem os habitantes de
sua cidade, que deveriam ser todos enforcados, nem os grandes poetas como
Homero e Hesíodo.
O fundamento último da filosofia de Heráclito
não está, portanto, no movimento, nem no conflito dos opostos, mas na ideia da
unidade do todo, na ideia de que a razão, que subjaz ao conflito, é capaz de
unificar os opostos e dar lhes proporção e medida. Sob a perspectiva do Deus que
para ele é a razão ou o Uno, todas as tensões são reconciliadas e as diferenças
harmonizadas. Como ele disse:
Para o Deus todas as coisas são justas e boas, mas os homens
sustentam que algumas coisas são erradas e outras certas.
Há também em Heráclito o que me parece uma sugestão acerca da natureza
da filosofia como um saber antecipador da ciência, que ele apresenta na forma
do saber adivinhatório do oráculo. Eis como ele o expõe:
A sibila, que com sua boca delirante diz coisas sem
alegria, sem ornatos e sem perfumes, mas atinge com sua voz mais de mil anos,
graças ao deus que está nela.
Esse juízo de Heráclito sobre a sibila era na verdade sobre seus próprios
pensamentos. Ele também se aplica ao que de melhor foi feito na história da
filosofia. Muito da filosofia pré-socrática metaforicamente antecipa o que será
futuramente tematizado em maior rigor e detalhe por outros filósofos ou mesmo
descoberto pela ciência. Por isso a filosofia tem sido chamada de o berçário
das ciências, ou ainda, de o guardador de lugar da ciência.
4
Parmênides. Talvez o mais influente dentre
os filósofos pré-socráticos tenha sido Parmênides de Eleia (530-460 a.C.), o
fundador da escola eleática. Para ele o princípio, a arché, era o que
ele chamou de o ser. Ele definiu o ser como uma coisa imóvel e imutável.
A ideia central é a de que o ser, o uno, é, enquanto o não-ser, a mudança, o
vir-a-ser, é apenas uma ilusão. Precisa ser assim porque se qualquer coisa vem
a ser então ou ela vem a ser do ser ou do não-ser. Se ela vem a ser do ser
então ela já é, caso no qual ela não pode não ter sido. Mas se qualquer coisa
vem do não-ser, então ela nada é, pois nada vem do não-ser.
Mas o que é, afinal, o ser?
Parmênides apresenta o ser como possuindo uma lista de atributos. Para ele o ser
é incorruptível, nem ele é gerado nem perecível, encontrando-se inteiro em cada
instante. Ele é absoluto, contínuo, indivisível, imóvel e também finito e redondo,
pois a esfera finita era para os gregos o símbolo da perfeição, embora isso
seja melhor entendido como uma metáfora. Em conformidade com o modo de pensar
dos pré-socráticos o ser parmenideano deve, pois, pertencer à physis, à
natureza. E como ele adiciona que o objeto do pensar e do ser é o mesmo, ele parece estar apontando
para o objeto do pensamento verdadeiro. O ser parmenideano parece tomar o lugar
dos deuses do politeísmo, mas perdendo a qualidade de projeção antropomórfica
característica dos últimos. Seu discurso sobre o ser também poderia estar
apontando para as leis da natureza, mais tarde aproximativamente apreendidas
pela mente humana, no que parece possível de ser encontrada uma proximidade
última entre Parmênides e Heráclito.
Parmênides complementa esse
pensamento metafísico-ontológico (i.e., daquilo que é, que existe de maneira mais
geral) com algumas sugestões epistemológicas que dão início a um domínio de
investigação que será desenvolvido mais tarde por Platão e que chega até os
dias de hoje. Ele distingue explicitamente a via do conhecimento da via erro. O
conhecimento diz respeito ao ser enquanto o erro diz respeito ao pretenso
conhecimento do não-ser. O conhecimento do ser é imutável, diversamente do
pretenso conhecimento do não-ser, que advém da aparência, que é o conhecimento
daquilo que aparece aos sentidos e se apresenta como mutável.
Vale a pena transcrevermos aqui
o fragmento principal do poema de Parmênides:
E agora (disse a musa) vou falar: e tu, escuta as
minhas palavras e guarda-as bem, pois vou dizer-te dos únicos caminhos da
investigação concebíveis. O primeiro diz que o ser é e que não pode ser que ele
não seja; esse é o caminho da verdadeira persuasão, pois segue a verdade. O
segundo caminho diz que o que não é, é, e que o não-ser é necessário; essa via,
digo-te, é imperscrutável; pois não podes conhecer aquilo que não é, nem o
expressar em palavra.
Filósofos posteriores, tanto materialistas como idealistas, foram
influenciados por Parmênides. Assim, os atomistas, que eram materialistas,
acreditavam que os átomos eram o ser, pois estes eram imutáveis e
indestrutíveis. Já Platão acreditava que o ser eram as ideias imutáveis e
indestrutíveis, existentes em um mundo puramente inteligível e superior ao
mundo material.
Os discursos de filósofos como
Heráclito e Parmênides nos impressiona mesmo hoje, mas o que eles significam possui
muito de enigmático, tendo por isso mesmo suscitado inúmeras interpretações. O
poema de Parmênides pode ser interpretado como uma antecipação metafórica e
sincrética do que será mais tarde desenvolvido por outros. Considere, por
exemplo, o que os lógicos depreenderam do poema de Parmênides. Eles perceberam
que ao dizer que o ser é e que não pode não ser ele estava vislumbrando os
princípios da identidade e da não-contradição mais tarde tematizados por
Aristóteles.
O efeito tão sublime quanto
ofuscante do poema de Parmênides parece ser o resultado da condensação de
ideias diversas, mas relacionadas, vagamente expressas em algumas poucas
linhas. Há no ser parmenideano um resquício da religião, dado que ele possui ainda
características divinas, como as de ser eterno e indestrutível. Mas ele também
possui características lógicas, por antecipar os princípios da identidade e da
não contradição. Afora isso, ele distingue conhecimento de erro, constrangendo-nos
a buscar a verdade no lugar da falsidade, a qual não pode sequer ser dita sem
revelar a sua natureza.
5
Os filósofos pré-socráticos se distinguiram por terem substituído as
explicações mitológicas por especulações metafísicas que possuíssem o que poderíamos
chamar de a forma da teorias científicas, entendendo-se por isso ideações
especulativas que detém suficiente analogia com as últimas, cuja criação é
motivada por conhecimento prévio da natureza da investigação científica. É isso
o que há em comum entre o atomismo especulativo de Demócrito e a teoria atômica
da microfísica contemporânea, ou entre a especulação de Anaxágoras e a presente
teoria cosmológica do Big-Bang. Eles tiveram a ideia de substituir a antiga explicação
do cosmo por meio de deuses pela explicação através de princípios especulativos
que eles mesmos não tinham como avaliar, dado a insuficiência de meios e
informações que lhes permitissem resultados precisos em um domínio de
investigação ainda não existente.
Tais especulações só se deram porque esses
filósofos foram profundamente influenciados pelas ciências que eles conheciam e
cujo desenvolvimento já se iniciava na Grécia antiga. Havia a matemática
importada do Egito e da Babilônia, como o caso da geometria, considerada pela
primeira vez pelos gregos em abstração de suas aplicações, o que permitiu que
ela fosse axiomatizada no trabalho que culminou com a obra de Euclides
intitulada Os Elementos. Havia o conhecimento de astronomia tomados dos
egípcios. Platão já acreditava que a terra se movia. Sabemos, por exemplo, do
notável feito de Erastótenes (circa 300 a.C.). Ele conseguiu medir o
diâmetro da terra com razoável precisão, sabendo que ela era redonda. Ele
mandou colocar duas estacas ao meio dia, separadas mais de mil quilômetros uma
da outra. Uma delas fazia uma sombra maior do que a outra, devido à
circunferência da terra. Tomando como comparação as medidas dos triângulos
formados pelas estacas e suas sombras, ele conseguiu calcular com certa
precisão a circunferência da terra, um feito extraordinário que foi esquecido nos
séculos seguintes. Havia também um conhecimento de engenharia e de rudimentos
de física, como pode ser ilustrado pela lei de Alavanca de Arquimedes (287-222
a.C.) ou por sua medição da massa específica de diferentes substâncias,
estabelecida pela relação entre o volume de água por elas deslocado e o peso. É
assim evidente que os gregos já estavam cientes da imensa vantagem teórica e
prática que só o conhecimento científico é capaz de trazer.
6
Auguste Comte. O estudo dos pré-socráticos nos oferece uma excelente
oportunidade para investigarmos a natureza da filosofia. Quando nos perguntamos
sobre o que os pré-socráticos estavam fazendo e sobre a natureza da filosofia em
sua relação com a ciência, alguma luz pode ser trazida pela consideração da assim
chamada “lei dos três estados” desenvolvida por Auguste Comte (1798-1857), o
mais importante filósofo francês do século XIX.
A chamada lei dos três estados
da evolução da civilização, já antevista por outros, foi desenvolvida por Comte
em seu Curso de filosofia positiva. Esses estados são o teológico,
o metafísico e o positivo. Quero no que se segue interpretar lei tal
como ela ainda pode ser reconhecida como plausível. Em adição a isso observo
primeiro que não se trata de uma lei no sentido mais estrito, mas de uma regularidade
tendencial. Trata-se da identificação de uma vaga sucessão de três estados, que
tendem a se sobrepor de modo parcial e irregular no desenvolvimento da
civilização. Eis como Comte a apresenta:
A lei consiste em que cada uma de nossas principais concepções,
cada ramo de nosso conhecimento, passa sucessivamente por três diferentes
estados teóricos: o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou
abstrato; o estado científico ou positivo. Em outros termos, o espírito humano,
por sua natureza, emprega sucessivamente, em cada uma de suas pesquisas, três
métodos de filosofar (...)
O estado teológico é aquele no qual as anomalias da natureza (seus
imprevistos) são explicadas pela intervenção de projeções antropomórficas
chamadas “deuses”. Tendencialmente ele começa com o fetichismo, caracterizado
pelo animismo, a ideia de que objetos inanimados também são deuses. Ele passa então
ao politeísmo, no qual certo número de deuses concorrem na explicação das
anomalias da natureza. Nesses dois subestados cada anomalia pode ser explicada
por um deus diferente, não se impondo a questão de unificar suas causas. Essa
unificação só é realizada no terceiro subestado, o do monoteísmo, que se
caracteriza pela crença na existência de um único Deus. Isso permite uma
explicação unificada do mundo, ainda que antropomórfica. Para Comte, o estado
teológico corresponde à infância da humanidade. Ele é repetição do que ocorre
no crescimento cognitivo do indivíduo humano, correspondendo à sua infância, ou
seja, ao estado no qual a criança acredita na existência de fadas, bruxas e
gnomos.
O estado metafísico é o que faz
a transição entre os estados teológico e positivo. Nele os seres humanos buscam
substituir os seres sobrenaturais por entidades abstratas em uma passagem do
imaginativo para racional. O Deus sobrenatural deve ser substituído por “abstrações
personificadas” que sirvam de princípio explicativos para todo o universo, de
preferência reduzindo-se tudo a um único princípio. Exemplos de tais princípios
explicativos são as Archai dos pré-socráticos. Esse estado é uma
passagem intermediária entre os estados religioso e o científico.
Os estados religioso e
metafísico são para Comte importantes por motivarem os seres humanos a buscar o
conhecimento científico quando ele ainda não é possível. Assim, o ser humano
persistiu observando os movimentos dos astros por milhares de anos quando
buscava através disso meios de prever o futuro. Ora, foi só essa crença supersticiosa
que permitiu que se chegasse a descobertas astronômicas reais, desde a medição,
distinção e previsão dos os movimentos das estrelas e planetas, do geocentrismo
de Ptolomeu, até mais tarde a ruptura que consistiu no heliocentrismo de
Copérnico, nas leis de Kepler e nas descobertas de Newton. Sem um longo estado
de especulação pré-científica nada disso poderia ter ocorrido. Para Comte esse
foi o momento da adolescência da humanidade. Em termos de desenvolvimento
cognitivo do indivíduo trata-se realmente da adolescência, na qual os jovens se
comportam como aprendizes de feiticeiros, acreditando tudo saber sem terem
aprendido o suficiente. (Piaget identificou a característica metafísica do
adolescente com o domínio intuitivo da lógica proposicional.)
Fazendo abstração de qualquer tentativa de datar os estados a consideração do estado
metafísico nos auxilia na compreensão do que os filósofos pré-socráticos
estavam fazendo, pois os princípios ou Archai por eles buscados
encontravam-se de algum modo entre os deuses da mitologia e as leis naturais.
Podemos aqui distinguir duas espécies teóricas de Archai, digamos, as excessivas
e as escassas. As excessivas são as que adicionam a entidades
naturais propostas como formas de leis entidades com vida e consciência própria
semelhantes aos deuses. As escassas são as que se restringem a entidades
naturais propostas e formas de leis, sem a adição de entidades supernaturais. Os
pré-socráticos são os melhores exemplos de filósofos metafísicos no sentido
proposto por Comte porque suas Archai apresentam o inteiro espectro, já
que eles estavam enfadados da mitologia e aspiravam a ciência sem ter condições
de alcançá-la, disso resultando suas especulações. Assim, a água de Tales era um
princípio exuberante: ela funciona como se fosse uma lei natural a possibilitar
a vida, encontrando-se ao mesmo tempo repleta de deuses. O ar de Anaximandro
era necessário à respiração e, portanto, à vida. Em Empédocles os quatro elementos
eram regidos pelas forças do Amor e do Ódio, que apesar de receberem nomes de
afetos eram físicas, regulando nomologicamente o curso cíclico do universo. Para
os pitagóricos esses princípios eram números e formas tornadas exuberantes,
posto que não só satisfazem relações matemáticas e geométricas, mas que devem
determinar o destino dos seres viventes. O ar de Anaximandro é uma Arché
que permite, pela sua respiração, fazer o homem e o universo viverem, sendo
também espírito, ainda que menos exuberante. O mesmo acontece com a mente de
Anaxágoras. Aqui o papel do psicológico é menor, posto que essa mente deve
pertencer à physis; ainda assim trata-se de um princípio espiritual
capaz de comandar o curso do universo. Exemplos de Archai escassos,
elementos ou formas de leis não espirituais, são os átomos de Demócrito, o
Ápeiron de Anaxímenes, o fogo de Heráclito e o ser de Parmênides. Neles o
aspecto espiritual tende a desaparecer, permanecendo alguma coisa vaga e
obscura, uma forma que toma o lugar de uma inalcançável compreensão do todo.
Princípios metafísicos fundamentadores da realidade como um todo continuaram
sendo propostos ao longo de toda a história da filosofia. Assim, Platão tinha
as ideias, Aristóteles a substância, os medievais tinham o Deus dos filósofos, Leibniz
tinha as mônadas, Kant tinha o noumenon, Hegel tinha o absoluto, Heidegger
tinha o Ser, Wittgenstein tinha o indizível... Sob essa perspectiva o período
metafísico foi mantido até a primeira metade do século XX, em variação com a
perspectiva positivista de Comte.
O último estado é o científico
ou positivo. Aqui o ser humano substitui a pergunta pelo “porquê” pela pergunta
pelo “como”. Ele desistiu de buscar princípios últimos explicativos de todo o
universo, contentando-se em buscar relações fixas entre os fenômenos observados,
ou seja: leis da natureza. Ao invés de buscar por uma verdade absoluta o ser
humano passou a buscar verdades por meio de aproximações sucessivas, consciente
de poder sempre estar errado. Essa seria a fase adulta do desenvolvimento da
humanidade, correspondendo, na psicologia do crescimento individual, ao homem
adulto.
O ponto importante é que se
Comte estiver certo então a filosofia, compreendida pelo que ele chama de
metafísica, deverá ser toda ela em algum ponto substituída pela ciência.
7
A lei dos três estados precisa ser complementada pela classificação das
ciências particulares feita por Comte, uma vez que os estados religioso e
metafísico antecedem o nascimento de cada uma delas e que elas nascem em
sucessivamente, em dependência uma da outra.
Para Comte as ciências
particulares podem ser classificadas segundo a sua generalidade e segundo a sua
complexidade. A generalidade opõe-se a complexidade e vice-versa. Quanto mais
geral é uma ciência, mais simples ela é em seus princípios. Quanto mais
complexa é uma ciência, menos geral ela é. Alterando um pouco a lista de Comte
das ciências particulares nós chegamos ao seguinte quadro:
Maior complexidade SOCIOLOGIA
PSICOLOGIA
BIOLOGIA
QUÍMICA
FÍSICA Maior simplicidade
A física é a ciência de maior simplicidade quanto aos princípios. Em
compensação suas leis devem se aplicar ao universo inteiro. A química diz
respeito a combinações entre os átomos. Ela se aplica ao fenômeno emergente que
são os compostos químicos que existem na terra, mas não se aplica a maior parte
do universo, que não permite a composição química mais complexa. A biologia se
aplica à vida, um fenômeno emergente relativo aos reinos animal e vegetal, que
cobrem parte da terra. A psicologia diz respeito apenas aos seres vivos
conscientes, capazes de vida mental, o que é mais um fenômeno emergente, não se
aplicando aos vegetais. E a sociologia só se aplica aos seres vivos conscientes
capazes de se reunir na formação de sociedades complexas e podemos nos perguntar
se essas sociedades não são também um fenômeno emergente. Há um grande número
de outras ciências, mas elas são derivadas, por exemplo, a geologia, que usa
conhecimentos da física, da química, da biologia, etc. com o objetivo de
estudar rochas. A astronomia (que Comte erroneamente considerava uma ciência
particular) aplica conhecimentos de física, química, etc. para estudar o cosmo.
A neurociência intenta aplicar nosso conhecimento de biologia, bioquímica,
biofísica, etc. para estudar o funcionamento do cérebro...
Importante é notar que a
passagem do estado metafísico para o estado científico se deu no emergir de
cada ciência particular em tempos muito diferentes. A “física” aristotélica
(enquanto física) era puramente especulativa e completamente errônea, tendo
prevalecido até o fim da Idade Média, tornando-se realmente ciência só após
Galileu, no século XVI. Entre as ciências empíricas a física surgiu primeiro,
uma vez que ela é pressuposta pelas outras ciências particulares, mas não as
pressupõe. A química só passou de seu estado metafísico para o estado
científica no final do século XVIII, pressupondo em muito a física. A biologia
só começou a se libertar das especulações durante o século XIX com Pasteur,
pressupondo para seu desenvolvimento o conhecimento de ciências mais básicas,
incluindo invenções como a do microscópio. E a psicologia e a sociologia se
encontram ainda hoje em um estado parcialmente conjectural (metafísico), a
despeito do otimismo de Comte quanto à última. Ciências derivadas como a
neurociência, por sua vez, dependem para seu desenvolvimento de toda espécie de
desenvolvimentos anteriores de outros ciências, inclusive na produção dos meios
de pesquisa. Quando consideramos o que se deu realmente vemos que a lei dos três
estados diz respeito apenas a uma tendência geral de sucessão, não existindo um
tempo histórico para cada estado, visto que eles se sobrepõem de tal maneira
que ainda hoje encontramos resíduos do estado teológico e muito do estado
metafísico, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas.
Filósofos em geral sempre
torceram o nariz para as ideias de Comte. Eles se sentiam feridos pelo seu
cientismo positivista, por sua maneira antifilosófica e apressada de substituir
a conjectura filosófica pela ciência. Sartre chegou a dizer que Comte está na
origem do fascismo... Mas isso é bastante injusto. Friamente consideradas, certas
ideias de Comte parecem-nos hoje, em suas linhas gerais, bem mais plausíveis do
que algumas especulações de Sartre, especialmente quando revisada de uma
perspectiva mais ampla e generosa.
7
J. L. Austin. A consideração da lei dos três estados nos leva
diretamente a uma outra ideia, que é a de que a filosofia é uma protociência.
Segundo ela a filosofia é aquilo que é possível fazer antes do surgimento da
ciência. Quando ainda não sabemos o suficiente sobre os métodos a serem
empregados, quando não sabemos sequer quais são os dados que devem ser
considerados mais fundamentais, por isso mesmo não tendo critério para saber
que teoria devemos escolher, o que resulta é uma pluralidade de filosofias.
Essa situação também permite um uso relativamente livre da imaginação na busca
de soluções meramente especulativas. E isso é aquilo que mais caracteriza a
filosofia. Como observou J. L. Austin em uma famosa metáfora que não me canso
de repetir, na qual prepara o terreno para seu plano de retirar da filosofia
uma ciência da interação comunicativa:
Na história da investigação humana, a filosofia tem o
lugar do sol inicial central, seminal e tumultuoso: de tempos em tempos ele
lança fora uma porção de si mesmo para formar estação como ciência, um planeta,
frio e bem regulado, progredindo continuamente em direção a um final distante.
Isso aconteceu há muito tempo atras com o nascimento da matemática, e ainda com
o nascimento da física... Não é possível que o próximo século possa ver o
nascimento, através do trabalho conjunto de filósofos, gramáticos e numerosos
outros estudantes da linguagem, de uma verdadeira e abrangente ciência da
linguagem? Então nós teremos nos livrado de mais uma parte da filosofia (haverá
ainda muitas deixadas para trás) da única maneira pela qual podemos nos livrar
da filosofia, que é chutando-a para o andar de cima.
Austin demonstrou isso na prática. Ele passou os últimos dezesseis anos
de sua vida trabalhando no desenvolvimento de uma gramática dos diferentes atos
de interação linguística, como afirmar, perguntar, prometer, pedir, ordenar,
batizar... disso resultando o que ele chamou de a teoria dos atos de fala, que
hoje é estudada mais nos cursos de linguística do que nos de filosofia. Esse é o conceito de
filosofia como protociência, complementar à visão de Comte. O sol
inicial central e tumultuoso não pode ser melhor descrito do que na exposição
da filosofia dos pré-socráticos.
A questão que resta é se
realmente toda a presente filosofia poderá um dia ser substituída pela
ciência. E ainda outra questão é a de se saber se novas questões nunca antes
colocadas não poderão surgir.
Finalmente, há uma objeção à
ideia de filosofia como protociência que me parece resultar de simples confusão.
Ela foi feita por Anthony Kenny, que observou que pelo menos os domínios
centrais da filosofia, como a metafisica, as teorias do significado e a ética,
continuarão para sempre filosóficas. O erro está na concepção
de ciência usada. A concepção que Kenny tinha em mente, a mais difundida,
provinha do positivismo lógico e se resumia ao emprego de experimentos
verificacionais (Carnap) ou falseadores (Popper), notadamente os passíveis de
repetição. Tais concepções se aplicam quando muito à física, mas não se aplicam
a domínios obviamente científicos como a teoria da evolução, que não é passível
de experimentos repetíveis. Ademais, o que dizer de ciências como a
linguística, a história, a antropologia física? Concepções positivistas de
ciência costumam ser reducionistas, por isso deixando de corresponder ao que cientistas
e pessoas educadas costumam chamar de ciência, que é algo muito mais amplo. Se
quisermos entender a filosofia como protociência tendo tal concepção em vista a
conclusão de Kenny é inevitável. O sol seminal filosófico, naquilo que ele tem
de mais central, jamais poderá dar lugar à ciência.
Há, contudo, uma definição de
ciência não reducionista, que se complementa perfeitamente com a ideia de
filosofia como protociência. Trata-se do que um sociólogo da ciência, John
Ziman, sugeriu. Segundo Ziman, o traço mais fundamental da investigação
científica é que ela é um conhecimento público consensualizável (públic
consensualizable knowledge). Explicando: o
conhecimento científico precisa ser apto à possível obtenção de consenso quanto
aos seus resultados da parte de uma adequada comunidade de ideias. Essa é a concepção implicitamente vigente
entre os cientistas. A antropologia física é científica porque a comunidade
científica é capaz de concordar com os seus resultados. A teoria das cordas
pertence à microfísica, que é ciência, porque é ao menos fisicamente possível
que ela venha a obter uma comprovação experimental com a qual os físicos
estejam de acordo. Mas isso não acontece com a astrologia, visto que os
astrólogos jamais conseguiram um acordo sobre seus resultados. E isso também não
acontece com a filosofia. Resumindo-nos aos pré-socráticos, não temos como
dizer quem estava certo, se Heráclito ou Parmênides, se Empédocles ou
Demócrito. A pergunta sequer faz sentido.
8
O triângulo filosófico. Há, por fim,
ainda uma outra maneira conhecida de se entender a natureza da filosofia que nos
pode auxiliar.
Vou resumi-la.
A ideia é que filosofia é uma
prática cultural derivada. Um exemplo de prática cultural derivada é a ópera.
Ela é basicamente um resultado derivado de três práticas artístico-culturais
que são: a poesia, o enredo literário e a melodia instrumental junto ao canto
lírico. Tendo em vista a filosofia parece que podemos considerá-la como uma
prática cultural derivada das três práticas culturais mais fundamentais, que
são as práticas religiosa, artística e científica. A filosofia não é
propriamente nenhuma dessas três práticas, mas retira material, métodos e motivações
de cada uma delas. Da prática religiosa ela retira a motivação mística, visível
em sua perspectiva abrangente, como no tradicional e impossível esforço para
explicar o universo como um todo e o lugar do homem nele. Da prática artística
ela retira seu caráter inevitavelmente metafórico, como visto em seus conceitos
fundamentadores (como o ser, a ideia, a coisa em si, o absoluto...), em suas
imagens retóricas, em seus exemplos. Finalmente, da prática científica ela
retira seu objetivo heurístico, além de sua metodologia formal ou empírica. Com
isso podemos construir um triângulo em cujos vértices encontram-se a religião,
a arte e a ciência, encontrando-se a filosofia no espaço interior do triângulo,
como é sugerido abaixo:
CIÊNCIA
FILOSOFIA
RELIGIÃO
ARTE
Quando consideramos a filosofia dos pré-socráticos encontramos todos
esses elementos. É evidente o elemento estético nos aforismos de Heráclito ou
no poema de Parmênides. Mas Heráclito escreve em tom oracular e o poema de
Parmênides é apresentado por uma deusa contendo o elemento místico. Finalmente,
o Heráclito busca a sabedoria do logos e Parmênides tem por objeto o
conhecimento do verdadeiro, tal como ele pode ser buscado pela ciência. A mesma
combinação podemos encontrar nos outros filósofos pré-socráticos.
Podemos intuitivamente situar
os diferentes filósofos em diferentes locais internamente ao triângulo.
Filósofos que possuem em medida similar elementos místicos, estéticos e
heurísticos podem ser postados no meio do triângulo, a exemplo de Platão. Filósofos
cujo trabalho possui predominância de elementos místicos podem ser postados
próximos ao vértice religioso do triângulo, a exemplo de Hegel. Filósofos com
predominância de elementos estéticos, poetas-filósofos como Nietzsche, podem
ser postados próximos do vértice artístico do triângulo. Filósofos com
predominância dos elementos estético e místico, como Kierkegaard e Heidegger,
podem ser postados próximos à linha de baixo do triângulo. E ainda, Filósofos
com interesses particularmente heurísticos, como Locke, Russell, Rudolph Carnap
e Saul Kripke podem ser postados próximos ao vértice científico do triângulo.
O triângulo filosófico nos
ajuda até mesmo a classificar as filosofias de diferentes culturas. Filósofos
alemães, desde místicos como Meister Eckhart até filósofos de grande estatura
como Kant, Husserl e Heidegger, geralmente demonstravam proximidade do vértice
religioso, que foi maximamente exemplificada no idealismo absoluto de Hegel. A
filosofia francesa, desde Descartes, mas em um nível extremo no movimento
pós-modernista de pensadores como Foucault, Deleuze e Derrida, possui ênfase
estética, tendendo ao extremo artístico. Finalmente, a filosofia anglo-americano-australiana
põe ênfase no aspecto heurístico, próprio do vértice científico. Basta
considerar exemplos de filósofos como Locke, Russell, W. V-O. Quine, Saul Kripke,
e mesmo, se bem considerados, J. L. Austin e John Searle.
9
A filosofia dos pré-socráticos foi no século V substituída pela
filosofia madura da Grécia antiga, que foi a de Sócrates, Platão e Aristóteles.
Esses, junto a filósofos como Kant, Hume e Hegel, constituem o cânone, se assim
podemos chamar, da tradição filosófica, pela amplitude, coesão lógica e força imaginativa
de seus sistemas. Eles foram tentativas de explicar o mundo e o lugar do homem
nele com base no conhecimento e na cultura de suas épocas.
II
O IDEALISMO PLATÔNICO
Em
comparação com os pré-socráticos Platão é um mundo. Ele e seu aluno Aristóteles
foram os dois grandes filósofos do mundo antigo, comparáveis a Hume, Kant e
Hegel na filosofia moderna. Eles foram os primeiros a construir grandes
sistemas filosóficos tentando explicar especulativamente o mundo como um todo e
o lugar que o homem nele ocupa. Ao fazê-lo desenvolveram amplas visões de mundo
(Weltanschauungen) ainda hoje influentes. Eles viveram em um tempo no
qual a cultura grega começara a declinar com a tomada de Atenas por Esparta, o
que parece dar razão à Hegel, com sua observação de que a filosofia é como a
coruja de Minerva, que só alça seu voo ao anoitecer.
Platão (428-348 a.C.) pertenceu à
aristocracia ateniense. Era para ter-se tornado um político. Mas decepcionou-se
com as atrocidades da democracia ateniense, principalmente com a condenação de
Sócrates. Platão tentou influenciar politicamente Dionísio, o tirano grego de
Siracusa, o que quase lhe custou a vida. Depois disso acabou vivendo o resto de
sua longa vida como professor na academia por ele fundada. As maiores
influências no pensamento de Platão foram os filósofos pré-socráticos,
principalmente Parmênides e Heráclito, junto ao misticismo e fetichismo
numéricos dos pitagóricos. Mas a principal influência foi a de Sócrates, de
quem foi discípulo.
1
É
difícil explicar uma personalidade como a de Sócrates. Ele nunca deixou palavra
escrita, pois queria que sua palavra se imprimisse nas mentes das pessoas. Acredita-se
que cerca de dois terços de Atenas era constituído de escravos, de modo que mesmo
com poucos recursos o cidadão Sócrates podia se dar ao luxo de viver pelas ruas
de Atenas discutindo filosofia. Segundo Nietzsche, um crítico sarcástico, a responsável
teria sido sua esposa Xantipa. Para se livrar da presença dessa mulher difícil,
quarenta anos mais jovem, que muito trabalho lhe dava e nenhum prazer, Sócrates
resolveu ir para as ruas de Atenas, onde, conversando com as outras pessoas,
desenvolveu seu talento para a dialética. A mãe de Sócrates era uma parteira.
Sócrates não a decepcionou. Ele tornou-se, segundo suas próprias palavras, um
parteiro de ideias, que ele fazia nascer à fórceps das cabeças das pessoas com
as quais conversava.
Os interesses de Sócrates eram muito
diversos dos interesses dos pré-socráticos. Enquanto aqueles tinham a
cosmologia como o centro de suas preocupações, Sócrates se interessava pela
ética. Sócrates defendia uma forma de intelectualismo moral. Para ele a moral é
uma forma de conhecimento radicada na natureza humana. Por isso, a má ação é
sempre resultado de alguma forma de ignorância. Quem age mal é uma pessoa que
não sabe fazer uma adequada estimativa do que tem a ganhar ou perder com sua
ação. Ninguém faz o mal sabendo-se ultimamente culpado. A pessoa espera obter algum ganho como a
riqueza, o poder ou o prazer, não percebendo que com isso ela está causando um dano
maior a si mesma. Sócrates acreditava que a perda da virtude é um mal que é
feito à integridade psicológica da pessoa. Por isso é melhor sofrer do que
praticar uma injustiça. A conclusão de Sócrates foi a de que uma pessoa só é
capaz de ser feliz se for virtuosa. Não que a virtude seja o mesmo que a
felicidade. Mas a verdadeira felicidade pressupõe a virtude, cuja ausência
implica na infelicidade.
Se Sócrates
estava certo ou o quanto ele estava certo são questões muito difíceis de serem
respondidas, uma vez que não sabemos ao certo o que é a felicidade e menos
ainda como medi-la. Além disso, o que dizer de pessoas sem consciência moral,
que não tem sentimento de culpa quando fazem coisas erradas? Não poderiam elas
ser felizes na ausência de virtudes? Ou a espécie de felicidade por elas
alcançada não seria plena?
Para além da ética, uma outra contribuição
de Sócrates foi a introdução do problema dos universais na filosofia. Ele
teria sido a primeira pessoa a sugerir que só podemos dizer um de muitos se
recorrermos a universais, ou seja, a conceitos gerais. Assim, podemos atribuir
justiça a muitas e muito diversas ações, bondade às mais diversas pessoas,
beleza a muitas coisas diversas. Mas isso só deve ser possível porque temos um
conceito geral do que seja a justiça, o bem e a beleza, que foram posteriormente
chamados de os universais. Além disso, se somos capazes de comparar, por
exemplo, dizendo que uma ação é mais justa que outra, é porque devemos ter um
modelo de justiça que permita a comparação. Como consequência, o objetivo de
Sócrates era investigar, não as coisas justas, boas e belas, mas o que é a
justiça, o bem, a beleza. Ele queria encontrar definições para termos como ‘justiça’,
‘beleza’, ‘coragem’, ‘amizade’, etc. E ao buscar definições ele estava fazendo
o que na tradição analítica contemporânea chamamos de análise conceitual.
A preocupação de Sócrates com definições de
termos gerais de importância filosófica aparece como uma constante nos diálogos
platônicos. Nesses diálogos encontramos sempre perguntas da forma “O que é X?”,
onde X está no lugar de um termo conceitual que desempenha em geral alguma
função central em nosso entendimento do mundo. Assim, a pergunta poderá ser “O que
é a virtude?” (Protágoras). “O que é a coragem?” (Laques), “O que
é a justiça?” (República), “O que é o conhecimento?” (Teeteto), e
assim por diante.
Por seu
questionamento moral Sócrates incomodava as pessoas que detinham poder em
Atenas. Ele incomodava os políticos por recusar-se a participar de ações
desonrosas. Ele incomodava os sofistas, que eram pessoas que cobravam para
ensinar a arte da oratória às pessoas de modo a fazê-las obter sucesso, posto
que ele mesmo nada cobrava pelos seus ensinamentos e desprezava os valores
mundanos. Decidiram livrar-se dele. Sócrates foi acusado de desdenhar os deuses
e corromper a juventude, devendo ser por isso condenado a morte. O objetivo
parece ter sido apenas o de fazer com que ele fugisse de Atenas. Mas como ele
não fugiu, tiveram de submetê-lo a um julgamento público. No final os juízes concluíram
que ele era culpado e que deveria ser condenado a morte, mas que teria o
direito de decidir por uma pena alternativa que não fosse a morte, mas que
fosse suficientemente severa, como a de ser banido de Atenas ou ter a língua
cortada.
Sócrates reagiu argumentando que não só não
era culpado, como fez grandes favores ao estado através de ações e ensinamentos.
Por conseguinte, não deveria ser punido, mas recompensado. Como acontecia com
os heróis da Polis, ele merecia viver dos favores do estado pelo resto
da vida. Afrontado, o júri não teve outra opção senão condená-lo à morte por
envenenamento com cicuta.
Platão foi testemunha desses acontecimentos e
podemos atribuir à influência de Sócrates seu ensinamento de que a mais elevada
de todas as ideias, algo semelhante ao sol que ilumina tudo o mais, é a ideia
do bem. A ética de Platão não era diferente da de Sócrates. Quando agimos mal
nós fixamos nossa atenção em algum bem, esquecendo-nos das consequências, que
para nós mesmos podem ser piores.
2
Voltemos
a Platão. O centro radial de seu sistema, do qual partem as explicações, foi a sua
doutrina das ideias. Essa doutrina surgiu como uma maneira de conciliar a
doutrina do mundo em mudança constante de Heráclito com a doutrina do Ser
imutável de Parmênides, objeto único do conhecimento. A solução de Platão
consiste na admissão da existência de dois mundos completamente separados um do
outro: o mundo visível e o mundo inteligível. O mundo visível é o
das aparências sensíveis no qual tudo se encontra em constante mudança, tal
como Heráclito pensava. O verdadeiro mundo, porém, deve ser o mundo
inteligível, que é o mundo do ser e que é imutável. O mundo inteligível é
constituído de ideias (idea) ou formas (eidos), eternas e imutáveis. E o conhecimento só é possível
porque tem por objeto, não as coisas do mundo visível, em constante mudança,
mas as ideias eternas e imutáveis. Esse mundo das ideias é para ele o único verdadeiramente
real. Para ele os dois mundos, o das ideias e o dos sentidos existem e sempre
existirão paralelamente um ao outro, em completa independência um do outro.
Exemplos centrais de ideias são as do bem,
da beleza, da justiça, do conhecimento, da coragem, da amizade. Essas são
ideias sublimes, cuja definição será buscada nos diálogos. Mas há também ideias
mais vulgares, como as de cama, homem, água ou fogo. Para Platão existe uma
hierarquia das ideias, a mais elevada de todas sendo a ideia do bem, que como o
sol ilumina todas as outras. Para ele, sem sabermos o que é o bem não seremos
capazes de compreender e definir as outras ideias de maneira adequada. Abaixo
do bem há ideias como a de ser, identidade, semelhança, movimento... e ainda
justiça, beleza e virtude. E mais abaixo temos ideias como as de homem, cama,
água e fogo. Ideias que estão embaixo implicam nas que estão em cima, por
exemplo, a ideia da justiça implica na ideia do bem. Contudo, Platão nunca
conseguiu expor essa hierarquia de modo coerente.
Para Platão as ideias possuem numerosos
atributos: elas não se encontram nem no espaço nem no tempo, elas são essências
imutáveis, absolutas e sublimes. Diversamente do ser de Parmênides e dos
pré-socráticos em geral, elas são transcendentes em relação à physis,
nada possuindo de material. A transcendentalidade das ideias é uma inovação
original de Platão: ele as apresentou como existindo em uma realidade
supra-sensível, para além da dimensão física, em uma ruptura definitiva com o
naturalismo dos pré-socráticos.
No sentido usual as ideias são entidades
psicológicas que se encontram no espaço e no tempo. Se digo “Acabei de ter uma
ideia”, a ideia é algo que aconteceu há alguns segundos e em um lugar
específico, qual seja, na minha cabeça. Mas as ideias de Platão não são
entidades psicológicas. Elas são entidades objetivas transcendentes, às quais
todos nós podemos em princípio ter acesso.
Além disso elas são entidades singulares. Só
existe uma ideia do belo, só uma ideia da justiça, uma da virtude, uma do bem. É
por isso que a ideia de um número não pode ser a mesma coisa que os números,
dado que os números se repetem e se adicionam – não é possível que na soma 2 +
2 = 4 duas ideias do número 2 se juntem. Sendo objetivas e singulares, as
ideias são objetos, mesmo que abstratos. Para demonstrar isso Platão usava o
recurso de substantivar ou nominalizar predicados que designavam ideias.
Assim,
no enunciado “Sócrates é sábio” a ideia de sabedoria comparece de modo
secundário. Nós só nos referimos mesmo à sabedoria quando colocamos a palavra
no lugar do sujeito em um enunciado como “A sabedoria é uma virtude”,
nominalizando o predicado. Aqui a palavra ‘sabedoria’ se refere primariamente a
um objeto abstrato: a ideia de sabedoria. Para evidenciar esse ponto Platão
usava em grego expressões que podem ser traduzidas como “o X-em-si-mesmo”, “a
X-idade”, ou “aquela coisa própria que é X”.
Por serem unitárias as ideias desempenham o
papel fundamental de universais, permitindo-nos “dizer o mesmo de muitos”, em
outras palavras, permitindo a espécie de síntese característica da predicação.
Isso fica claro quando consideramos enunciados do tipo Fa, como
“Sócrates é sábio”, “Parmênides é sábio”, “Heráclito é sábio”. Podemos predicar
a sabedoria de muitas coisas. Segundo Platão essas coisas participam da
sabedoria no sentido de que elas são cópias ou imitações da Sabedoria-em-si-mesma.
Outra propriedade das ideias é a de serem
autopredicativas. O belo-em-si-mesmo é belo, a justiça-em-si-mesma é justa. As
coisas belas são belas de modo aspectual. Sócrates era feio de rosto, mas tinha
beleza interior. O belo em si mesmo, contudo, é belo em todos os aspectos. Isso
se torna problemático quando pensamos em ideias relacionais. O grande é grande.
Mas esse é um predicado relacional. É grande em relação a que? Se é em relação
a tudo o que possa ser grande ele deve ser infinitamente grande.
Seguindo o tratamento que Sócrates deu aos
conceitos, Platão considerava as ideias passíveis de definição. Por exemplo,
existem muitos triângulos com as mais variadas formas. A ideia de triângulo não
possui uma forma específica. Mas ela pode ser definida: “o triângulo é um
polígono com três lados”. Filósofos analíticos contemporâneos falariam de
análise ao invés de definição, o que demonstra que a assim chamada tradição
analítica, bem considerada, é continuação da filosofia tradicional.
O mais importante é a maneira pela qual as
ideias se relacionam às coisas do mundo visível. Platão tinha duas metáforas: a
da participação (méthexis) e a da cópia ou imitação (mímesis). A
ideia é uma coisa única. Mas muitas coisas do mundo visível podem participar
dela, ou, se quiserem, copiá-la. Assim, as muitas coisas belas participam da
ideia de beleza, assim como as muitas coisas justas participam da ideia de
justiça. Ou então dizemos que coisas sensíveis contêm cópias imperfeitas das
ideias. Para Platão nós só podemos conhecer o mundo sensível porque ele contém
cópias, mesmo que imperfeitas, das ideias ou formas. O substrato não ideativo,
não formal do mundo sensível é e será para sempre incognoscível.
3
Além
da contribuição para a ontologia através da doutrina das ideias, Platão
contribuiu para a epistemologia através de sua teoria dos graus de conhecimento
e de sua análise das ideias de conhecimento e crença. A primeira é apresentada
nas bem conhecidas analogia da linha dividida e na alegoria da caverna. Quero
me restringir aqui a algumas observações sobre sua análise das ideias de
conhecimento e verdade e de suas consequências epistemológicas.
No diálogo Teeteto Platão analisa o
conceito de conhecimento como sendo a crença verdadeira a qual se adiciona um logos
(razão). Mas logos é uma palavra com mais de um sentido, o que termina fazendo
o diálogo terminar inconcluso. Contudo, basta substituirmos a palavra ‘logos’
pelas palavras ‘justificação’ ou ‘evidência’ que chegamos à definição de conhecimento
como crença verdadeira justificada. Essa definição foi aceita por Kant e
atravessou intacta mais de dois mil anos de filosofia. Desde a década de 1960
do século XX essa definição tradicional tem sido objeto de críticas devido à
descoberta de contra-exemplos que parecem demonstrá-la insuficiente. No que se segue
quero abrir parênteses para explicar essa definição e mostrar que, se bem
entendida, ela sobrevive incólume aos contraexemplos, demandando apenas algum
detalhamento suplementar.
Comecemos com a exigência de que a crença
seja verdadeira. Se uma pessoa sabe que p (sendo p uma proposição qualquer), é
preciso que p seja verdadeira. Uma pessoa pode saber que a Lua tem pedras, pois
isso é verdadeiro, mas ninguém pode saber que a Lua é feita de queijo suíço,
pois isso é falso. Também não podemos saber algo e não acreditar que seja
verdadeiro. É contraditório dizer: “Sei que sou professor de filosofia, mas não
acredito nisso”. Se não acredito é porque não sei, ao menos em circunstâncias
normais. Finalmente, se eu sei então sou capaz de justificar, ou seja, sou
supostamente capaz de apresentar evidência justificadora da minha afirmação. Por
exemplo: se digo que sei que Villa Lobos compôs as Bachianas Brasileiras,
é porque sou capaz de justificar isso dizendo que assisti uma apresentação das
Bachianas no Youtube. Mesmo que em muitos casos eu tenha esquecido a
justificação de algo que sei, se eu sei é porque de alguma forma eu me dispus
de uma justificação. Por exemplo, eu sei que a Divina Comédia começa com
“Nel mezzo del cammin di mostra vita mi ritrovai per uma selva oscura...”
porque li isso algumas vezes, mas não me recordo onde. Mesmo que não me recorde
onde, basta que alguém abra o livro para se certificar de que estou justificado
em dizer que sei. O que não posso é prescindir da justificação ou me valer de
justificação que não seja reconhecível por outros como sendo razoável. Não
posso dizer, por exemplo: “Estive na Lua enquanto dormia porque me recordo
claramente disso”, pois essa não é uma justificação razoável. Até aqui as
objeções são contornáveis. Contudo, a definição tradicional de conhecimento
como crença verdadeira justificada foi desafiada através de alguns exemplos
sugeridos por Edmund Gettier que em um pequeno artigo de 1963, onde apresentou
casos nos quais havia crença verdadeira justificada, mas sem conhecimento.
Desde então uma enorme quantidade de artigos foi apresentada na tentativa de
substituir ou remendar o insight platônico.
Eis um
contra-exemplo do tipo Gettier que serve para exemplificar. Suponhamos que
ontem Maria ouviu do professor Pedro que hoje ele estaria pela manhã na
universidade para avaliar uma defesa de tese. Como Pedro é um professor
petreamente sério, Maria pensa que sabe que ele se encontra agora na
universidade. Ele de fato se encontra na universidade. Maria tem, assim, uma
crença verdadeira justificada. Mas na verdade ela não sabe, pois durante a
madrugada os três filhos adolescentes de Pedro sofreram um sério desastre de
carro e se encontram agora hospitalizados. Pedro suspendeu todos os seus
compromissos para hoje. Contudo, por mro acaso ele se realmente encontra na
universidade, pois veio rapidamente ao seu escritório pegar alguns documentos.
Embora existam dezenas de soluções inteligentes
para o problema, elas parecem todas insatisfatórias. De minha parte não tenho
dúvidas de que a melhor solução é bastante intuitiva e preserva o essencial da
definição tradicional. Ela foi aventada desde o início, mas só foi
suficientemente desenvolvida por Robert Fogelin e mais tarde tornada mais
rigorosa por mim mesmo. Para chegar a ela basta se
notar que em todos os contra-exemplos do tipo Gettier a justificação nunca é
suficiente para tornar a proposição verdadeira: dizer que o confiável Pedro
havia afirmado ontem que viria hoje à universidade... quando adicionado ao conhecimento
do fato de que seus três filhos foram acidentados e que por causa disso ele
suspendeu seus compromissos deixou de ser suficiente como justificação de que
ele se encontra agora na universidade. Mas dizer que ele se encontra na
universidade por tê-lo visto entrar em seu escritório há poucos minutos sim. A
solução consiste, pois, em exigir que a terceira condição, a condição de
justificação, seja suficiente para tornar a proposição verdadeira da
perspectiva de um sujeito avaliador e no momento de sua avaliação. O
sujeito avaliador é sempre alguém que conhece mais fatos do que a pessoa que
apresenta sua pretensão de conhecimento, o que inclui as razões para considerar
a justificação por ela dada insuficiente. No caso acima o sujeito avaliador é uma
pessoa que sabe que os filhos de Pedro foram acidentados e que ele suspendeu
seus compromissos para hoje na universidade... Esse sujeito dirá que Maria não
sabe porque a justificação por ela dada não é suficiente para tornar sua
afirmação verdadeira. Se ela tivesse dito, por exemplo, que viu Pedro entrando
em sua sala alguns minutos antes, sua justificação seria plenamente aceita pelo
sujeito avaliador. Concluímos, pois, que uma pessoa S sabe que p se e somente
se (i) é verdade que p, (ii) a pessoa acredita que é verdade que p e, por fim, (iii)
a justificação que a pessoa S oferece para p é considerada por um avaliador Sa
(que pode ser até mesmo o próprio S em um momento posterior) mais inteirado dos
acontecimentos como suficiente para tornar a proposição p verdadeira. A
definição de conhecimento sugerida por Platão não demanda revisão, mas
aperfeiçoamento.
Platão fez usos epistêmicos de sua doutrina
das ideias. Ele explica como podemos dizer o falso. Dizer o falso não é dizer
nada (como em Parmênides), mas dizer algo diferente do que é, atribuir
ao que é uma outra combinação de ideias. Se o estrangeiro do diálogo Sofista
profere a sentença “Teeteto está sentado” e Teeteto realmente está sentado,
isso é verdadeiro, pois ele se refere com o nome ‘Teeteto’ ao jovem Teeteto e
usa o verbo para dizer de um estado de coisas que é que ele é assim como ele
diz que é; mmas quando o estrangeiro profere a frase “Teeteto está voando”
quando Teeteto na verdade está sentado, embora ele se refira a Teeteto com o
nome, ao usar o verbo voar ele diz do que não é que é, dizendo assim o
falso. Aqui Platão sugere pela
primeira vez a definição de verdade como correspondência, que em Aristóteles é
apresentada como:
Dizer do que é que não é e dizer do que não é que é, é
falso, enquanto dizer do que é que não é e do que é que é, é verdadeiro.
Aqui
se encontra uma primeira formulação da teoria da verdade como correspondência,
segundo a qual um enunciado verdadeiro é aquele que corresponde ao modo como
as coisas estão dispostas na realidade. Aqui podemos sugerir que quando uma
combinação conceitual de ideias que ocorre em nosso pensamento corresponde à
combinação das ideias copiadas nas coisas, então dizemos o verdadeiro. Mas
quando ela não corresponde à combinação copiada nas coisas então estamos
dizendo o falso. Apesar disso a sentença falsa não deixa de ser significativa,
uma vez que a combinação conceitual de ideias é que é responsável pela sua
significação, encontre ela um correlato objetivo ou não.
Mas por que razão o mundo visível é constituído
de cópias das ideias? Platão responde com o mito da formação do mundo. Para
Platão, tanto o mundo das ideias como o mundo sensível sempre existiram. Mas
eles existiam em paralelo, e o mundo sensível era um caos primevo incognoscível
e indefinível, não podendo ser considerado real. O Deus-Demiurgo, guiado pela
ideia do bem, decidiu tomar como modelos as ideias ou formas do mundo das
ideias e por meio delas enformar coisas sensíveis a partir da matéria caótica
do mundo primevo, de modo a produzir indivíduos que fossem cópias, ainda que
imperfeitas, das ideias perfeitas. O Demiurgo pode ser entendido como o símbolo
da razão operando no universo. É só por formarem cópias imperfeitas das ideias
que as coisas do mundo sensível podem ser chamadas de reais. As ideias doam
realidade às coisas que as enformam.
Essa maneira de entender o mundo sensível
permite a Platão oferecer uma explicação inteiramente racionalista da aquisição
do conhecimento. Ele acreditava na ideia da transmigração das almas ensinada
pelos místicos pitagóricos. Para ele, antes de serem incorporadas, nossas almas
estiveram vagando no mundo das ideias ou então pertenciam a outros seres vivos.
Uma vez incorporadas, as ideias foram apagadas, tornando-se inconscientes. Mas quando
temos a experiência sensível de coisas no mundo visível, por exemplo, de ações
justas, somos levados a rememorar a ideia de justiça com a qual tivemos contato
no mundo das ideias ou em outras encarnações. A conclusão
impressionante é que todo nosso conhecimento não passa de reminiscência
(anamnesis). Usando o conceito kantiano de conhecimento a priori
como aquele que não é proveniente da experiência, mesmo que dela dependa para
ser formado, podemos dizer que todo o conhecimento humano é para Platão
conhecimento a priori. No diálogo Menon ele ofereceu uma
comprovação de sua teoria no exemplo de um escravo que, induzido por Sócrates,
é levado a desenhar na areia a prova de um teorema de geometria. Para Platão
ele o fez por reminiscência da geometria euclideana que sua alma já conhecia
desde sempre. Nós hoje estamos em condições de oferecer uma explicação
diferente. Nós diríamos que a evolução natural produziu em nossas mentes a
capacidade inata de aplicação geometria euclideana, que usamos o tempo inteiro
ao nos movermos no mundo. A experiência pode nos fazer tomar consciência dos
procedimentos de aplicação da geometria euclideana e de como provar um teorema
a partir de axiomas. Mas a espécie humana aprendeu essa geometria através de um
processo de seleção natural que é empírico e de natureza ultimamente indutiva.
4
Platão
foi um filósofo capaz de rever suas ideias, submetendo-as à crítica. Foi assim
com a doutrina das ideias. Na primeira parte do diálogo Parmênides ele
apresenta ao jovem Sócrates uma série de objeções à doutrina das ideias que
Sócrates não consegue responder.
Uma primeira objeção foi a de que se
admitimos que predicados remitem a ideias, então assim como admitimos as ideias
de bem e de virtude, precisamos admitir ideias como as de cabelo, lama e
sujeira. Só que essa é uma admissão repugnante para Sócrates, que a rejeita sem
saber respondê-la.
Outras objeções são contra as metáforas de participação
e cópia. Quanto à cópia há um problema de simetria. Como nota Parmênides, se as
coisas brancas são como a ideia de brancura, então a ideia de brancura deve ser
como as coisas brancas. Mas isso não parece certo! Uma resposta a favor de
Platão seria a de que a relação de semelhança não é realmente simétrica.
Afinal, embora a face que vejo no espelho seja reflexão de minha face, a minha
face não é reflexão da face que vejo no espelho. A relação de cópia é de
semelhança por derivação.
Uma outra objeção diz respeito à
participação. Se as coisas precisam participar da ideia, então ela perde a sua
unidade e homogeneidade. A imagem proposta por Parmênides é a de vários
marinheiros carregando uma vela sobre as costas. Outra imagem é a do bolo de
passas. Imaginando que as coisas particulares sejam como os marinheiros ou como
as passas no bolo, cada qual participa de parte da ideia e não do todo e a
ideia precisa dividir-se por partes, cada qual contendo coisas diversas. A
outra alternativa é a de que a ideia se multiplica pertencendo por completo a
cada coisa que dela participa. Nos dois casos a ideia perde a sua unidade e
homogeneidade original.
Sócrates tenta retrucar sugerindo que a ideia deve ser como o sol que
ilumina o dia e todas as coisas que nele se encontram. Essa é uma bela
metáfora, mas não sabemos como resgatá-la.
Ainda outra objeção presente no Parmênides
é a do terceiro homem, mais tarde apresentada por Aristóteles. Se os homens H1,
H2… H3 são todos cópias da ideia de homem, então parece que é preciso haver uma
nova ideia da qual tanto os homens particulares quando a ideia de homem são
cópias. Mas se for assim, então precisaremos de ainda outra ideia para garantir
a última relação e assim por diante. A essa objeção seria possível responder
que a ideia é sui generis, e que o argumento do terceiro homem trata a
ideia como se fosse uma coisa visível entre outras.
Quero ainda lembrar uma objeção simples de
Aristóteles contra a teoria. Trata-se da objeção de que Platão duplica os
mundos. Além do mundo empírico precisamos de um mundo inteligível contendo um
número ilimitado de ideias, o que é anti-econômico. A solução de Aristóteles
será a de colar o mundo inteligível ao mundo sensível, de maneira a formar um
único mundo. Por isso uma maneira trivial de distinguirmos a ontologia de
Platão da ontologia proposta por Aristóteles consiste em dizer que para Platão,
se o mundo físico deixar de existir o mundo das idéias permanecerá existindo;
mas para Aristóteles, se o mundo físico deixar de existir, como ele
desaparecerá também o mundo das ideias ou formas.
5
Há
também objeções contemporâneas à doutrina. Quero considerar três. A primeira,
que proponho aqui, é algo que deveria ocorrer a qualquer estudante de lógica
simbólica: Platão, não conhecendo a lógica predicativa desenvolvida por Gottlob
Frege, confundia nossa gramática de superfície com a gramática lógica no que
diz respeito a nominalização de predicados. Para o que Platão sabia de lógica um
enunciado como “Sócrates é sábio” teria a mesma estrutura que “A sabedoria é
uma virtude”, ou seja, uma estrutura do tipo Sujeito-Predicado ou Fa
(onde a é sujeito e F é o predicado). Ora, como Platão consegue
encontrar os referentes de sujeitos como ‘Sócrates’ no mundo visível, e mesmo
pessoas e ações virtuosas, mas não encontra no mundo visível nenhum referente
que para o termo ‘A sabedoria’ na posição do sujeito, ele conclui que deve
haver um mundo inteligível no qual exista A-sabedoria-em-si-mesma, ou seja, a
ideia da sabedoria.
A lógica dos predicados por sua vez nos
sugere que um termo como ‘a sabedoria’ é apenas uma forma nominalizada
do predicado ‘...é sábio’, remetendo por isso a ele. Quando analisamos
completamente os dois enunciados acima veremos que embora as suas estruturas
gramaticais sejam idênticas, as suas estruturas ou formas lógicas são
completamente diversas. “Sócrates é virtuoso” tem a estrutura lógica do tipo Fa.
Mas “A sabedoria é uma virtude” apenas parece ter a forma lógica de Fa.
O que ela quer dizer é “Tudo o que é sábio é virtuoso”, ou ainda, “Para todo x,
se x é sábio, então x é virtuoso”, ou, por fim (chamando ‘...é
sábio’ de ‘S’ e ‘...é virtuoso de ‘V’, “(x) (Sx → Vx)”). Aqui o sujeito ‘A sabedoria’
deixa de existir. Passamos outra vez a falar de coisas sábias, mas não mais da
sabedoria-em-si-mesma, como Platão acreditava.
Uma segunda objeção vem de Nietzsche, que
foi um crítico mordaz da civilização cristã como negadora do mundo. Para
Nietzsche Sócrates foi o primeiro cristão e o cristianismo é o platonismo do
povo. No início do século V a.C. Atenas havia caído sob o jugo de Esparta e seguia
um caminho de decadência do qual nunca mais se recuperou. Platão foi um
prisioneiro do ideal ascético, um escapista incapaz de suportar as duras
vicissitudes de uma realidade que estava além de seu controle. Criou então para
si e seus discípulos a ilusão de que esse mundo sensível que tão pouco nos traz
é pouco mais do que aparência, deslocando a realidade para um mundo puramente
intelectual, seu fantasioso mundo das ideias. Esse mundo das ideias passaria a
possuir a realidade (a plenitude do ser) com a qual ele não queria se deparar
no mundo empírico.
A psicanálise freudiana pode ser aqui
chamada para reforçar Nietzsche. Platão nunca se casou e chegou a afirmar que o
intercurso sexual só deveria ser mantido com vistas à reprodução. Aristóteles,
que negava a existência de um mundo separado de ideias, teve duas esposas
consecutivas e dois filhos. A psicanálise poderia ver na negação do mundo
sensível uma justificação inconsciente para a rejeição dos impulsos
sexuais.
A Terceira objeção poderia vir da filosofia
terapêutica de Wittgenstein, para quem muito de nossa filosofia consiste na
produção de “nós do pensamento”, de “castelos de carta” com palavras, e que a
função crítica do filósofo é desatar os nós do pensamento ao desfazer os
castelos de carta da linguagem, trazendo as palavras de suas férias metafísicas
de volta para o seu labor cotidiano.
Para um filósofo wittgensteiniano o conceito
platônico de ideia seria irresgatável. Platão dá objetividade ao conceito de
ideia originariamente psicológico, além de lhe prover do atributo de objetividade
e de máxima realidade. Como não há suporte intuitivo nem justificação
suficiente para essa inversão de valores semânticos, a ideia platônica não deve
passar de uma fata morgana intelectual. Se a introdução da noção de
ideia for capaz de ser teoreticamente produtiva, ela será aceitável. Sem isso,
tratar-se-á de um conceito ininteligível e destituído de sentido.
Para
testar esse ponto sugiro invertermos as sílabas dos termos: ideia passa a ser aiedi,
forma passa a ser amrof, o uno passa a ser onu, o ser passa a ser
res, a realidade passa a ser edadilaer. Em seguida substituímos
as palavras no texto platônico. Assim, ao invés de uma frase como “as ideias
são a causa da realidade de todas as coisas e o uno é a causa da realidade de
todas as ideias” termos a frase “as saiedis (ou samrofs) são a causa da
edadilaer de todas as coisas e o onu é a causa e a essência de todas as saiedis
(ou samorfs). A primeira frase é obscura, a segunda é ridiculamente vazia de
sentido.
Uma última tentativa de defender Platão
dando sentido às ideias seria dizer que elas são como as leis da
natureza. Como tais elas seriam objetivas, imutáveis e até mesmo reais e capazes
de doar certa realidade àquilo a que se aplicam. A lei da gravidade, por
exemplo, precisa ser distinguida de nossa expressão conceitual dessa lei, que
pode ser falsa. Por que não poderíamos dizer o mesmo de ideias como as de bem e
de justiça? Talvez porque não podemos falar de modo primário do bem-em-si-mesmo,
como Russell mostrou, assim como não faz sentido falar da
gravidade-em-si-mesma, mas de propriedades gravitacionais do espaço-tempo. Parece
que a objeção de que Platão hipostasia as ideias, provendo-lhes sub-repticiamente
de atributos que não lhe são pertinentes, permanece.
6
Quero agora resumir a psicologia de Platão. Ele tomou dos pitagóricos a
sugestão de que a alma (psiqué) possui três partes: uma parte apetitiva,
outra volitiva (corajosa, energética) e outra racional. A parte
apetitiva concerne ao desejo, ao apetite, ao impulso instintivo. A parte
volitiva concerne à emoção, ao espírito, à coragem, à energia. E a parte
racional concerne ao pensamento, ao entendimento, ao intelecto, à razão. As
primeiras duas são compartilhadas com os animais, sendo a última propriamente
humana. (Daí podermos definir o homem como um animal racional.)
Para elucidar a interação entre
essas três partes Platão sugeriu a imagem de uma biga celeste com um condutor,
que seria a razão, e dois cavalos, um bom (a alma volitiva) que quer alçar-se
aos céus e outro mau (a alma apetitiva) que lhe dá muito trabalho ao seu
condutor e precisa ser chicoteado.
Platão associa essas partes da
alma ao que os gregos tinham como sendo as quatro virtudes cardinais. A virtude
da parte racional é a sabedoria. A virtude da alma volitiva é a coragem.
Da união da parte apetitiva com a parte volicional surge a virtude da temperança.
Finalmente, da harmonia de cada uma dessas partes da alma de modo a formar um
todo temos a virtude da justiça.
A teoria da tripartição da alma
tem equivalentes contemporâneos. Um primeiro deles se encontra na divisão
freudiana do psiquismo em três instâncias: a do Id (Es), das
pulsões instintivas, a do Ego (Ich), que possuí a vontade
responsável pelo controle motor, e a do Super-ego (Über-Ich)
responsável pela repressão e controle das pulsões. Parece claro que a parte
apetitiva da alma corresponde ao Id, a parte volitiva corresponde ao Ego e a
parte racional corresponde aproximadamente ao Super-Ego.
Mas há diferenças. Uma delas é
o grande papel que Freud atribui ao inconsciente. Outra é que em Freud o Ego
é o condutor, mediando entre a razão e as pulsões instintivas, enquanto para
Platão o condutor deve ser a razão, ou seja, é algo aproximadamente
correspondente ao Super-Ego.
Há, por fim, uma possível fundamentação
científica para a tripartição platônica da alma. Trata-se da distinção proposta
pelo grande neurofisiologista norte-americano Paul McLean em sua teoria do
cérebro triúno.
Segundo essa teoria, nosso cérebro é constituído por três computadores
inter-relacionados e evolucionariamente originados. O arquiencéfalo,
correspondente ao bulbo raquideano e ao cerebelo, responsável pelas disposições
instintivas do organismo, como a fome e o desejo sexual... o mesencéfalo,
constituído pelo sistema límbico e responsável pelas emoções e motivações. Já o
neoencéfalo, que constitui o córtex, e que no ser humano ocupa mais do que 70%
da massa encefálica, é responsável pelo pensamento, pela racionalidade e pela
consciência. A teoria do cérebro triúno não deixa, pois, de demonstrar a
existência de divisões neurofisiológicas suficientemente próximas daquilo que
Platão havia sugerido. Há, portanto, bases científicas plausíveis para a
tripartição da mente proposta por Platão.
Platão acreditava na
imortalidade da alma, o que em uma época pré-científica era uma ideia menos implausível
do que na nossa. Ele acreditava que a alma vive no corpo como em uma prisão ou
túmulo. O corpo é como a casa de um caramujo, a alma, devendo ser por ela
carregado até a libertação final. O corpo é a origem dos males. Ele é a sede de
preocupações, doenças, paixões e fantasias, que conduzem aos conflitos que na
sociedade conduzem às guerras. Para ele se a alma é boa nesse mundo, ela irá
viver após a morte em alguma maravilhosa ilha bem aventurada, mas se ela é má
ela será castigada no Tártaro, que era o nome que os gregos tinham para o
inferno, pois só o sofrimento purifica o espírito. Tudo isso é platonismo.
7
Na antiguidade e durante o período medieval os diálogos políticos que
receberam maior atenção foram O Timeu e As Leis, escritos na
velhice de Platão. Foi só depois do renascimento que a importância da República
foi descoberta. Nesse diálogo colossal, pela primeira vez na história um estado
utópico é experimentalmente construído; um estado que deveria ser capaz de
realizar plenamente a sua função própria de prover a felicidade de seus
cidadãos.
A questão fundamental que
percorre a República é sobre como devemos definir a justiça. Em uma das
definições iniciais, a justiça acontece quando cada um recebe o que merece. Mas
isso nos dizer muito pouco. Após serem testadas várias sugestões implausíveis, Sócrates
sugere que a justiça seja investigada em grande escala. Como a justiça se dá
dentro de uma sociedade, nós devemos procurar saber qual será a forma de um
estado ideal, pois o estado ideal será aquele no qual reina a justiça. Sendo
assim, uma vez conhecido o estado ideal, dele poderemos mais facilmente
depreender o que é a justiça.
Ao considerar como é uma cidade-estado
Platão observa que ela tem como princípio operante a divisão do trabalho.
Ninguém pode fazer bem todas as coisas. Assim, cada segmento da sociedade se
especializa em fazer uma coisa e troca as coisas que faz pelas coisas de que
precisa.
A divisão de trabalho segue-se
de uma divisão de classes. Ele teve a ideia de fazer uso da teoria da
tripartição da alma para dividir os cidadãos do estado ideal em três classes,
segundo o predomínio das partes apetitiva, volitiva e racional da alma. As
pessoas com predomínio da parte apetitiva da alma formarão a classe
trabalhadora, dos agricultores e artesões, o que inclui mercadores e qualquer
coisa que envolva alguma atividade física laboral. (Em nosso mundo atual isso
incluiria a classe dos comerciantes e mesmo dos trabalhadores da indústria.) As
pessoas com predomínio da parte volitiva da alma formam a segunda classe, a dos
auxiliares, ou seja, a dos militares encarregados da defesa da cidade-estado, o
que era indispensável no mundo antigo. As pessoas com predomínio da parte
racional da alma formam a terceira classe, a dos governantes-filósofos. No
pensamento de Platão, assim como a parte racional da alma deve ter domínio
sobre as partes apetitiva e volitiva, a classe que representa a parte racional
do estado, representando a virtude da sabedoria, deve ter domínio sobre as
classes que representam a busca de honras e de lucros.
Para que as pessoas não se sentissem
ressentidas ao serem escolhidas como pertencentes a classes inferiores, mesmo
que isso fosse feito para o seu próprio bem, Platão recorre a uma “nobre
mentira”, que é a de que por decisão dos deuses, os trabalhadores tem uma alma
de bronze, os militares tem alma de prata, e os filósofos (naturalmente) possuem
almas de ouro.
A favor de Platão pode ser notado que em seu
sistema há tanto igualdade de oportunidades quanto mobilidade social. Até os
vinte anos todos deverão estudar educação física e artes no sentido amplo (os
gregos aprendiam a ler através da poesia). E o aprendizado não deverá ser
forçado, pois nesse caso as pessoas esquecem. Ele deverá ser baseado no puro
prazer de aprender. Quanto a mobilidade social, ele lembra que os pais não
podem por antecipação saber a predominância da parte da alma que terão os
filhos. Pode ocorrer que o filho de um guardião tenha a alma de bronze, ou que
o filho de um agricultor tenha uma alma de ouro. Por isso, após um período
inicial de educação universal haverá um primeiro exame, quando os jovens
completarem vinte anos. Quem for reprovado ficará pertencendo à classe
trabalhadora, tornando-se agricultor, artesão, comerciante ou coisa do gênero.
Quem for aprovado continuará aprendendo ciências como matemática e astronomia por
mais dez anos, até um segundo exame, quando completarem trinta anos. Só quem
for aprovado nesse segundo exame terá o direito de aprender filosofia. Para
Platão a filosofia não pertence ao início, mas ao final do processo de
aprendizado. Com efeito, mesmo hoje é de se esperar que o filósofo, enquanto
filósofo, possua uma ampla gama de pressupostos para ser capaz de desempenhar
adequadamente seu oficio.
Platão regulamenta a vida das pessoas em cada classe. Os auxiliares e guardiões
terão vida igualitária e não terão posses, para não serem corrompidos. Não
beberão em copos de ouro, pois o ouro eles deverão trazer em suas almas. Mulheres
terão os mesmos direitos dos homens na escala social; elas poderão ir para a
guerra e se tornarem guardiãs. Entre os auxiliares e guardiões não haverá
casamento, o sexo será controlado com objetivos principalmente eugênicos,
filhos não desejados sendo postos à parte. As crianças serão educadas em
creches, sem saberem quem são os seus pais. Ele acreditava que isso
implementaria maior senso comunitário de união entre os membros da classe, o
que parece a nós um preço demasiado grande. Entre os quarenta e os cinquenta
anos, além de estudarem ciências, os guardiões deveriam ganhar experiência do
mundo juntando-se à classe trabalhadora. Só depois dos cinquenta anos os
guardiões poderiam concorrer para que um deles se tornasse o rei, que seria
então um rei-filósofo, capaz de saber o que pode proporcionar a boa vida aos
seus concidadãos.
É interessante o que Platão diz sobre os
prazeres e bens materiais. Os cidadãos pertencentes à classe dos guardiões e
auxiliares não podem ter posses. Eles devem receber o suficiente para viverem confortavelmente
e de maneira igualitária. Isso é essencial para que não haja corrupção, nem
ambição demeritória. Quem poderá adquirir posses serão as pessoas da classe dos
agricultores, artesãos, comerciantes... Elas poderão acumular riquezas em
medida suficiente, pois pela inclinação de suas naturezas não buscam
integridade nem honras, mas principalmente os prazeres físicos. O estado
zelosamente administrado pelos guardiões isso será benéfico para a classe
apetitiva. A ideia aqui implícita, de que a riqueza não deve ser usada para
corromper a política, é perfeitamente atual.
Platão acreditava que só quando os governantes
forem sábios e o rei for filósofo uma república terá cidadãos felizes. Ele
terminou concluindo, com muito bom senso, que seu estado ideal é apenas um
experimento imaginativo. Mas esse experimento pode ser uma maneira de orientar
pessoas com relação à ideia de justiça.
O estado idealizado por Platão como
produzindo o máximo de felicidade para os seus cidadãos seria um estado justo.
Mas o que caracteriza a justiça que ele encerra? Ora, ela se caracteriza pela comunhão
do indivíduo com a comunidade, na harmonia entre as classes, uma harmonia que resulta
de cada um fazer aquilo que é capaz de fazer melhor, recebendo como
recompensa aquilo que prefere. A justiça consiste em cada um fazer e ter o
que lhe compete, ou seja: poder fazer o melhor e receber em troca o que por
natureza mais deseja. O estado ideal proposto
por Platão é projetado para permitir que seus membros floresçam naquilo que
eles possuem de melhor de modo a maximizar a cooperação social. E um homem
justo é aquele que ocupa o lugar que lhe é próprio na sociedade. A resultante harmonia
entre as partes de sua alma fará dele uma pessoa justa, refletindo assim a
justiça social como a harmonia entre as classes do estado. Por ser a justiça um
conceito social, não faz sentido as pessoas se perguntarem se são justas em uma
sociedade injusta. O grande exercício de pensamento que que foi a construção de
um estado supostamente perfeito possibilita ao seu autor uma explicação
plausível da natureza da justiça.
Mas essa não é a única conclusão importante
do diálogo. Já vimos que a virtude da parte racional da alma é a sabedoria, a
virtude da alma volitiva é a coragem, a da alma apetitiva unida à parte
volitiva é a temperança, e que a harmonia das partes da alma dá lugar à virtude
da justiça. Platão observa que cada classe de seu estado ideal incorpora em si
uma das virtudes consideradas cardinais: os guardiões incorporam a sabedoria;
os auxiliares incorporam a fortaleza ou coragem; a classe trabalhadora
incorpora a temperança. E a justiça consiste, como dissemos, na
harmonia entre as classes, no fato de que cada classe perfaz a tarefa que lhe é
apropriada.
Finalmente, com base nessas ideias Platão
distinguiu cinco tipos de constituição política que tendem a se seguir uma à
outra, decrescendo em virtude: monarquia (ou aristocracia), timocracia,
oligarquia, democracia e a tirania. A melhor forma de
constituição era para Platão a monarquia ou aristocracia, que preserva todas as
virtudes sob o timão a sabedoria. O estado ideal concebido por Platão pertence
a esse primeiro tipo, sob o suposto de que o monarca ou os aristocratas são sábios.
Quando os governantes deixam de ser sábios, o que temos é a timocracia: aqui o
governo é feito por militares, pelos que mantém a virtude da fortaleza ou
coragem. A timocracia tende a degenerar, dando lugar a uma forma de governo
ainda inferior, qual seja, a oligarquia. Esta ainda conserva alguma virtude de
temperança, mas perdeu a virtude da coragem. A oligarquia degenera-se em
democracia, que se caracteriza pela rejeição da temperança, ainda mantendo a
ideia de justiça. Na democracia as pessoas agem por amor ao lucro, pois o
dinheiro é o que permite a satisfação dos desejos materiais. Por fim, como as
pessoas na democracia perderam a temperança, elas são facilmente enganadas por
um líder demagogo que se alça ao poder e acaba por aprisionar os cidadãos em um
meio totalitário. É assim que a democracia se degenera em tirania, que é o
governo de déspotas que perderam até mesmo a ideia de justiça.
8
Apesar
de ser tida pelo próprio Platão como uma construção especulativa, sua República
foi em alguma medida realizada na prática durante a Idade Média. No século X a
divisão entre a classe clerical poderosa, que era uma classe celibatária que
preservava o saber, a classe dos príncipes e nobres, preparados para ir à
guerra e proteger os seus reinos pela força, e a classe dos servos,
responsáveis pela produção de bens materiais, lembra-nos claramente a divisão
tripartite das classes proposta na República de Platão. Isso significa que a
projeção social da tripartição da alma proposta por Platão encontrou alguma
concretização histórica.
Karl Popper responsabilizou Platão, Hegel e
Marx por, ao rejeitarem a democracia, influenciarem as pessoas no sentido de
fazê-las crer em estados totalitários. Popper observou que Platão e Heráclito
pertenciam à velha aristocracia grega que havia perdido o poder para a
democracia. Dois de seus tios foram mortos nessa disputa ao defenderem o
governo dos trinta tiranos. A herança aristocrática de Platão o fazia sentir-se
ressentido com a democracia.
A favor de Platão é preciso
lembrar que a República foi um trabalho especulativo que tinha como fio
condutar a tentativa de aclarar o que deve ser entendido como justiça em uma
sociedade. Ele via a especulação filosófica como aquilo que ela é: a busca da
verdade como uma forma de “entretenimento” intelectual. Diversamente de Marx,
ele já havia perdido a ambição de mudar o mundo pela especulação filosófica.
Afora isso, a democracia grega, que condenou
Sócrates à morte e que mais tarde forçou Aristóteles a se exilar de Atenas de
maneira a salvar a sua vida pouco tinha a seu favor. E a crítica feita por
Platão à democracia ateniense como o governo de uma multidão de pessoas cujo
objetivo é a satisfação de desejos materiais, sem as virtudes de temperança,
fortaleza e sabedoria, justifica-se ainda hoje como uma crítica às formas
atuais de democracia. Um filósofo contemporâneo como Philip Kitcher defende que
as pessoas precisam ser educadas para a democracia, e que ela precisa ser cientificamente
refinada de modo a possibilitar aos eleitores escolher como governantes aqueles
cujas ações realmente correspondam aos seus interesses, o que muitas vezes não
acontece.
O maior clássico da filosofia
política do século XX foi o livro de John Rawls intitulado Uma teoria da
justiça. Para que possamos conceber uma sociedade verdadeiramente justa
Rawls idealizou uma famosa experiência em pensamento. Imagine que você tenha
várias alternativas de sociedade para escolher e que você deva escolher entrar
em uma delas. Você conhece a natureza humana e sabe como as diversas sociedades
funcionam. Mas você não sabe como irá entrar em uma dessas sociedades: se rico
ou pobre, se jovem ou velho, se inteligente ou tolo, se branco ou negro... Você
deverá escolher entrar na sociedade coberto pelo que Rawls chamou de “véu da
ignorância”. Nesse caso, que sociedade você escolheria? A resposta é que você
preferiria entrar em uma sociedade social-democrática no sentido da em que a
expressão é usada nos países nórdicos... Pois essa será a sociedade onde, em
qualquer situação, você estará mais seguro. Você não escolherá entrar em uma
sociedade sem mobilidade como a da Roma antiga, onde terá boas chances de
entrar como escravo jamais lhe sendo possível o destino.
Uma questão é saber quantos de
nós, sob o véu da ignorância, escolheria entrar na sociedade ideal proposta por
Platão. Desconfio que muitos não se sentiriam satisfeitos. Apenas para começar,
suponha que você tenha nascido com as partes apetitiva e racional da alma
desenvolvidas, mas que a parte volitiva seja bastante fraca. Nesse caso você
não terá lugar na sociedade ideal de Platão, pois não estará bem nem entre os
agricultores nem entre os guardiões. Não há lugar na sociedade platônica para a
combinação de ouro com ferro.
9
No
incômodo capítulo X da República Platão condena a arte. Segundo Platão,
a arte é mímesis, que significa ‘cópia’. Mas como as coisas visíveis são
cópias das ideias e a arte é cópia dessas cópias, trata-se de algo demasiado imperfeito
e enganador. Platão aceitava em sua república apenas poesias e hinos
patrióticos. É muito difícil concordar com Platão nesse ponto, pois foi
exatamente essa a forma de arte que as mais lamentáveis ditaduras do último século
apoiaram.
Uma razão externa para discordarmos de
Platão consiste no fato de que os artistas se encontram em geral voltados para
o mundo sensível: seu material de trabalho é a vida como ela é, sem anestesias ou
consolações filosóficas. Voltados como estavam para experiências emocionais e
sensórias, eles eram os maiores críticos da ascese platônica. Se o estudo das
matemáticas a facilitava, a experiência estética a dificultava.
Mas existem razões internas para
discordarmos de Platão, concernentes a limitações no próprio argumento. Para
esclarecer o que há de mais errado na concepção de arte de Platão quero fazer
uma comparação com R. G. Collingwood, que distinguia três formas de arte: a arte
como entretenimento, a arte sacra, e o que ele chamou de arte própria, a
mais elevada forma de arte, que pode ter aqui como modelo a tragédia grega ou
Shakespeare. Para ele a única forma de arte verdadeiramente merecedora do nome
seria a arte própria, cujo objetivo era o de despertar a consciência: reavivar
nas pessoas aquilo que elas procuram esconder de si mesmas adoecendo a
sociedade. Como ele mesmo escreveu:
Conhecer
a nós mesmos é a fundação de toda a vida que se desenvolve além do nível de
experiência meramente físico. Uma consciência verdadeira dá ao intelecto uma fundação
firme; uma consciência corrompida força o intelecto a construir sobre areia
movediça.
Por isso o artista deve ser
um profeta
...não
no sentido de prever coisas que virão, mas no sentido de que ele conta a sua
audiência, sob o risco de desagradá-la, os segredos de seus próprios corações.
(...) Como porta-voz de sua comunidade, os segredos que ele precisa pronunciar
são os dela mesma. A razão pela qual ela precisa dele é que nenhuma comunidade
conhece o seu próprio coração; e por falhar em conhecê-lo, uma comunidade
engana-se a si mesma sobre uma matéria em relação a qual a ignorância significa
morte... A arte é a medicina comunitária para a pior doença da mente, que é a
corrupção da consciência.
Quero
exemplificar esse ponto lembrando de uma música cantada por Billie Holiday,
intitulada “Estranho Fruto” (Strange Fruit). Traduzo livremente:
Árvores do sul dão um estranho fruto
Sangue nas folhas, sangue nas raízes
Corpos negros balançando à brisa do sul
Estranho fruto pendurado sob os álamos.
Cena pastoral do galante sul
Olhos abaulados, bocas retorcidas
Perfume de magnólia, doce e fresco
E o repentino odor de carne queimada.
Um fruto para os corvos arrancarem
Para a chuva lavar e o vento sugar
Para o sol apodrecer e da árvore tombar
Aqui se dá uma estranha e amarga colheita.
O
estranho fruto são dois negros que foram linchados e enforcados sob uma árvore
na Carolina do Sul, em meio a uma multidão que se orgulhava do feito. Não havia
leis proibindo o linchamento. A cantora foi perseguida e até mesmo presa por
ter tido a ousadia de continuar cantando a música. Mas a sua letra amplia o
sentimento de injustiça ao denunciar metaforicamente, com irônica elevação de
alma, um cenário cruel. E não encontramos nada aqui de cópia da realidade, ao
contrário, digamos, de um artigo de jornal noticiando o acontecimento. O que
percebemos é uma maneira de se denunciar uma injustiça concreta colocada em
contraposição flagrante ao ideal de justiça.
Quero dar apenas mais dois outros exemplos
de arte própria. A primeiro diz respeito a Machado de Assis, tal como ele é
interpretado pelo crítico literário Roberto Schwarz. Segundo Schwarz, a segunda
fase da obra machadiana é uma sofisticada crítica social, que de tão sutil
passou quase despercebida. Isso acontece com o personagem Brás Cubas, a defunto
autor da peça literária incomparável que se chama As memórias póstumas de
Brás Cubas. Ele é um homem rico, inteligente, perspicaz e crítico, orgulhando-se
de ter aurido seus valores no mais progressista pensamento europeu da época.
Mas, ao mesmo tempo ele se gaba de nunca ter ganhado a vida com o suor do
próprio rosto, tem como amante uma senhora casada e dá importância a toda
espécie de superficialidade, como quando rejeita uma pretendente ao saber que
ela é manca ou mesmo quando inventa um emplastro capaz de curar qualquer tipo
de doença com o objetivo único de obter notoriedade. Outro exemplo é o mimado
Bentinho, o personagem moralizador do romance Dom Casmurro, cuja mãe era
por ele considerada um exemplo ímpar de doçura e bondade, mas que vivia do
aluguel de escravos. Para Schwarz Machado de Assis está ironizando as contradições
de nossa classe abastada, que em suas convicções se pretende progressista, mas que
em suas ações está disposta a ceder a toda espécie de baixeza.
Ainda um exemplo são os filmes fortes de
Cláudio Assis, principalmente O baixio das bestas, em que ele denuncia a
desumanidade nos canaviais pobres de Pernambuco. Como ele mesmo comenta a
respeito: “As piores coisas acontecem diante dos olhos de todos e ninguém faz nada
para impedir”.
Em todos os casos acima não há intenção alguma
de copiar a realidade, a menos que seja para denunciá-la, opondo a ela a ideia
mesma de justiça.
III
ARISTÓTELES E A METAFÍSICA
Aristóteles (384-322 a.C.) teve uma vida mais difícil do que Platão. Ele
nasceu em Estagira, na Macedônia, filho do médico da corte de Amyntas III, avô
de Alexandre o Grande. Aos 18 anos foi para Atenas e passou os próximos vinte
anos estudando junto a Platão. Após a morte do último não lhe herdou o lugar na
academia, o que o fez deixar Atenas. Foi então preceptor de Alexandre, tendo
passado algum tempo na ilha de Lesbos fazendo observações sobre a vida de
animais e plantas acompanhado de seu amigo Teofrastus, um botânico. Só para dar um exemplo de
suas pesquisas: foi ele quem teve a ideia de fazer um furo no ovo fertilizado
de uma galinha para observar o coração do embrião batendo, descrevendo pela
primeira vez a origem de uma criatura viva. Seu conhecimento das espécies
naturais teve influência direta nos conceitos que desenvolveu em sua
metafísica, como os de potencialidade e atualidade, matéria e forma.
Depois vieram dez anos de
sorte. Com a Conquista de toda a Grécia por Alexandre ele pôde voltar para
Atenas e fundar o Liceu, que se tornou o primeiro instituto científico da história,
recebendo consideráveis fundos do governo. Chegaram até a construir um
zoológico. Nos dez anos seguintes Aristóteles desenvolveu a sua filosofia na
forma pela qual a conhecemos hoje, trabalhando feito um mouro e mesmo assim
encontrando tempo para fazer dois filhos. Mas as coisas para ele também não
eram assim tão fáceis. Conta-se que uma vez Aristóteles escreveu a Alexandre reclamando
por este ter condenado a morte um filósofo inocente. A resposta teria sido: “Eu
também mato filósofos”. Aristóteles engoliu em seco. Com a inesperada morte de
Alexandre, vitimado pela febre aos 32 anos, o céu veio abaixo. Livres do
domínio macedônio, os atenienses decidiram vingar-se de estrangeiros como Aristóteles.
Como a Sócrates, acusaram-no de impiedade (desconsideração pelos deuses), o que
significava pena de morte. Para salvar sua vida Aristóteles teve de exilar-se
em Assos, adoecendo e vindo a morrer meses depois aos 62 anos de idade. Platão,
diversamente, morreu dormindo aos 80 anos.
Platão dividiu as pessoas entre
os “amigos das ideias” e os “gigantes da terra”. Os amigos das ideias eram
pessoas razoáveis como ele mesmo, que buscavam um mundo de coisas perfeitas e
imutáveis, as ideias. Eram idealistas geralmente versados nas matemáticas. Já
os gigantes da terra são barulhentos e só acreditam naquilo que podem ver e
tocar com as próprias mãos e até mesmo espremer... Para eles só é real aquilo
que conseguem manipular e que resiste ao toque. Não creio que Platão tivesse
em mente Aristóteles ao escrever isso, mas o fato é que este último se
distinguia do mestre pelo naturalismo e por uma forte tendência empirista, mesmo
que com eventuais recaídas platônicas. Aristóteles tinha
profundo interesse por zoologia e botânica. Diversamente de Platão, ele
casou-se e, com a morte da esposa amasiou-se de uma serva macedonense com a
qual teve um filho e uma filha.
Aristóteles escreveu uma obra
vasta opinando, certo ou errado, sobre quase tudo o que era investigado na
época. Foi o primeiro sistematizador da lógica através de sua teoria do
silogismo. Suas contribuições para a metafísica foram imensamente influentes.
1
A Metafísica é uma coleção de quatorze livros que costumam tratar
do que Aristóteles chamava de filosofia primeira ou ciência buscada. Somente
dois séculos e meio mais tarde Andrônico de Rhodes, que pela primeira vez publicou
as obras de Aristóteles em Roma, teve a ideia de chamar o conjunto dos escritos
relacionados à filosofia primeira de metafísica, o que significa “depois da
física” ou “para além da física”. A razão foi possivelmente casual: na ordem
dos escritos os manuscritos vinham depois da física, que Aristóteles chamava de
filosofia segunda. Mas foi um acaso feliz, uma vez que “meta” pode significar
“além de”, “acima de”, e o objeto da filosofia primeira era para Aristóteles superior
ao de todas as outras ciências.
O que foi chamado de Metafísica
é na verdade uma barafunda confusa, anotações de aulas, textos desconexos que
tem quebrado as cabeças dos intérpretes, de modo que não tenho esperança de fazer
aqui uma exposição linear do que Aristóteles escreveu. Ele deu várias
explicações sobre o que seria a filosofia primeira. Eis as quatro mais conhecidas:
1. A investigação do ente enquanto
ente,
2. A investigação da substância,
3. A investigação da causas e
princípios primeiros,
4. A investigação de Deus e da
substância supra-sensível.
Essas definições se encontram inter-relacionadas: A investigação do ente
enquanto ente é primariamente a investigação na substância (a Arché de
Aristóteles). Substâncias supra-sensíveis como Deus são investigadas pela
teologia, as quais são também causas primeiras.
Como a substância, as causas e princípios
primeiros, Deus como substância supra-sensível, serão tópicos pertencentes ao
estudo da metafísica, dizer que a metafísica as investiga não constitui uma
definição. Resta apenas (1): A investigação do ente enquanto ente. Mas o que
Aristóteles quer dizer com isso? Ser é aqui entidade ou coisa, de modo que ao
investigar o ser enquanto ser ele está querendo dizer que pretende investigar
as entidades enquanto são elas mesmas, ou seja, naqueles atributos que são
comuns a todas elas. Ciências especiais investigam entidades naqueles atributos
que são comuns a uma classe delas, como a investigação das entidades como seres
vivos (biologia) ou a investigação de entidades enquanto relações numéricas
(matemática). Como Aristóteles escreve:
Há uma ciência que investiga o ente enquanto ente e os
atributos que convém a ele em virtude de sua própria natureza. Isso não é o
mesmo que qualquer uma das assim chamadas ciências especiais, pois nenhuma
delas lida de maneira geral com o ente enquanto ente – antes, cada uma recorta
uma parte do ser e investiga os atributos dessa parte. Isso é, por exemplo, o
que as matemáticas fazem.
Ou seja: a metafísica investiga os atributos que convém às entidades em
geral de maneira “tópico-neutra”, ou seja, os atributos que convém, senão a
todas as classes de entidades, a grande maioria delas.
O ponto fica mais claro quanto
comparamos as sugestões de Aristóteles com as investigações feitas pela
metafísica contemporânea. Essa última trata daquilo que não é investigado por
nenhuma das ciências particulares, mas que é sempre pressuposto em suas
investigações, aparecendo sempre em suas terminologias sem ser questionado. São
questões que atravessam as ciências particulares e que fazem parte. Elas
constituem, digamos, a moldura através da qual pensamos o universo. Como bem definiu
A. E. Taylor em seu livrinho sobre Aristóteles, a metafísica deve expor os
“princípios estruturantes universais sem os quais não poderia existir nenhum
sistema ordenado de objetos conhecíveis”. Isso fica mais claro
quando consideramos alguns exemplos de conceitos que a metafísica contemporânea
investiga:
Propriedade, causalidade, espaço e tempo, objetos materiais,
número, existência, necessidade, possibilidade, o todo e a parte, princípios
lógicos universais...
No vocabulário das ciências particulares falamos o tempo todo de
propriedades, existência, relações causais, etc. Considere o caso das
propriedades: tudo o que existe possui propriedades. São propriedades físicas,
químicas, biológicas, psicológicas e sociais. Além disso todas as ciências
particulares empíricas tratam de relações causais entre os fenômenos por elas
estudados. Esses fenômenos ocorrem sempre no espaço e no tempo. Essas ciências
tratam de particulares, de objetos materiais, que vão desde os átomos da
física, passando pelas moléculas da química, pelos estados mentais da
psicologia, até as sociedades e seus indivíduos. Finalmente, todas elas consideram números de
entidades, sejam elas físicas, químicas, biológicas ou sociais… e também
consideram a existência ou inexistências das entidades pertencentes aos seus
domínios... Fica claro que embora todas essas ciências apliquem conceitos como
os de propriedade, indivíduo, causalidade, existência – conceitos pertencentes
à metafísica – nenhuma delas se ocupa da investigação da natureza e função
desses conceitos ou das relações que eles possam ter entre si. Esses conceitos são considerados por muitos
hoje como sendo empíricos, mas que não parecem tais pelo fato de que seu campo
de aplicação é tão amplo que eles dizem respeito, senão a tudo o que existe, a
maior parte daquilo que existe.
Aristóteles merece o crédito de
ter sido a primeira pessoa a perceber que conceitos referenciais que pertencem
aos mais diversos âmbitos de aplicação demandam uma investigação própria: a de
sua filosofia primeira. Como e o quão justificadamente ele desenvolveu a sua
metafísica é uma outra questão.
2
Consideremos, pois, o conceito aristotélico de substância (ousia).
Como Aristóteles chegou até ele? A resposta é: pelo exame da estrutura da
linguagem. Ele pressupôs que a estrutura da linguagem representativa fosse capaz
de refletir a estrutura última da realidade, um pressuposto que foi repetido no
início do século XX por Russell e Wittgenstein sob a inspiração da revolução na
análise lógica operada por Gottlob Frege.
Ora, a mais fundamental unidade do dizer em
nossa linguagem é a frase predicativa singular. Por exemplo: “Sócrates é calvo”,
“Veneza é uma bela cidade”, “Este cão é um caramelo”. Tais frases tem a forma Fa,
onde F é um predicado designando uma propriedade e a é um sujeito
que se refere a um indivíduo. Para Aristóteles o sujeito se refere ao que ele
chamou de ousia, que significa ‘ser’: o que é ou existe no sentido mais
forte da palavra. Por vezes Aristóteles usou também a palavra ‘hypokeímenon’,
que significa o que está sob, o que deu origem à enganosa tradução latina de ousia
como ‘substância’ (sub-stare = ‘estar sob’). Assim, para Aristóteles a substância
(ousia) é o que há de mais fundamental, pois é o que existe sem precisar de
outras coisas para existir; essa independência se demonstra linguisticamente
pelo fato de que a substância pode ser o repositório de muitos predicados,
mas não pode ser predicada de nada. Em um exemplo: Se digo que Sócrates é
sábio, a sapiência de Sócrates precisa de Sócrates para existir. Mas Sócrates
não precisa ser sábio para existir. Mais além, posso predicar de Sócrates
muitas propriedades, mas não posso usar o indivíduo Sócrates para predicar
coisa alguma. Logo, parece que o indivíduo Sócrates é a substância, a ousia,
o existente primário.
O fato de a substância ser
aquilo que é referido pelo termo singular não é suficiente para que possamos
identificá-la de forma precisa. Uma frase como “O ócio é o humus do espírito”
tem como sujeito ‘o ócio’, mas ele não se refere a uma substância. Aristóteles
precisava, pois, descobrir critérios de identificação mais adequados do que ele
queria entender como sendo aquilo que existe sem precisar de outra coisa para
existir. Há pelo menos dois momentos claramente distinguíveis no
desenvolvimento desses critérios: os de sua exposição nas Categorias e em
sua Metafísica.
No texto inicial, que é o das Categorias,
Aristóteles distinguiu dois sentidos da palavra ‘substância’. O sentido próprio
é o que ele chama de (i) substância primeira. Trata-se aqui do indivíduo
espaço-temporalmente localizável, do particular concreto, como Sócrates ou
Bucéfalo. Quando digo “Sócrates é sábio” estou me referindo ao indivíduo de
nome Sócrates que em um certo momento se encontra em um lugar específico. Mas
há também um sentido complementar do termo substância, que Aristóteles chama de
(ii) substância segunda. Trata-se da espécie de coisa à qual o indivíduo
referido essencialmente pertence. No caso de Sócrates trata-se do fato de que
ele é homem (no sentido de que é um ser humano). Assim, se digo “Sócrates é um
homem” estou através do predicado me referindo à substância segunda.
Na Metafísica
Aristóteles revelou-se insatisfeito com a definição de substância apresentada
nas Categorias. A razão é que na Metafísica ele passou a contrastar a
identificação da substância primeira com o indivíduo particular com a distinção
por ele introduzida entre forma e matéria de um indivíduo. Assim, a pergunta
que ele se fez é se a substância é (i) a matéria do indivíduo, (ii) a sua forma
(como espécie ou como gênero), (iii) o composto da forma e da matéria desse
indivíduo.
Ao que parece a substância não
pode ser a matéria pura e simplesmente. Assim, uma esfera de cobre possui a
forma, com base na qual a definimos como sendo esférica, mas ela é feita de uma
matéria, o cobre. Um ser humano possui a forma do ser humano, mas uma matéria
de ossos, músculos, gordura... Assim, Sócrates e Bucéfalo possuem formas substanciais
imanentes, além da matéria. O problema é que quando, falamos da matéria somos forçados
a nos referir a formas, pois o cobre é um metal, cuja matéria é o elemento
metálico de número atômico 29, e a matéria do corpo humano, descrita como sendo
feita de ossos e músculos pode também descrita como forma; a forma do músculo,
por exemplo, é feita basicamente de uma matéria que pode ser descrita como
feita de miofibrilas proteicas.
No livro VI ele fez uma interessante experiência
em pensamento, retirando uma a uma as propriedades de um indivíduo particular
de modo a fazer restar só a matéria. O resultado é que
simplesmente nada de dizível ou cognoscível resta! Como ele mesmo conclui: “A
matéria (destituída de qualquer forma) é incognoscível”. O problema de se definir
a substância torna-se aqui o de definir o que é primariamente substância, se a matéria
de que é constituído o indivíduo, sua forma (ou formas), ou o composto
de forma e matéria.
Eis a passagem crucial da Metafísica
na qual ele sugere dois sentidos fundamentais no entendimento do que é a
substância:
Segue-se que substância tem dois sentidos: (i) um
substrato último que não é mais predicado de coisa alguma. Uma substância é (ii)
um esse tal-e-tal (tode ti) separável – que por natureza é a feição ou
forma de qualquer coisa.
Comecemos analisando a primeira frase da citação: “uma substância é um
substrato último que já não é mais predicado de coisa alguma”. Como sujeito
último, a substância é um indivíduo impredicável. Como tal ele não pode ser dito
de qualquer outra coisa, ou seja, ele é o repositório último das predicações
que não pode ser predicado de coisa alguma. Contudo, o que pode ser objeto de
predicações, mas não pode ser predicado de nada não é algo que se deixe
explicitar pela linguagem. Por exemplo: Eu posso apontar para Sócrates e dizer:
“Sócrates é um homem”. Aqui eu predico de Sócrates uma forma substancial, a sua
essência, que é a de ser um ser humano. Assim, ser humano não pode ser
substância no sentido daquilo que é objeto último de predicações. Mas que dizer
da referência do nome próprio ‘Sócrates’? Considere a frase “Esse é Sócrates”.
Ela pode ser entendida no sentido de “Isso tem a múltiplas propriedades pelas
quais identificamos Sócrates”, ou mesmo, seguindo W. V-O. Quine, um lógico
contemporâneo, “Isso socratiza”. Aqui ‘Sócrates’ aparece como predicado de modo
a representar as múltiplas propriedades que o individuam! Mas então o nome
‘Sócrates’ não serve para fazer referência à substância como o indivíduo que é
“sujeito último e que já não é dito de qualquer outra coisa.” A única maneira
de nos referirmos à substância primeira não predicável é usando o pronome
demonstrativo ‘esse’ que, com ajuda do um gesto apenas indica uma certa região
espaço-temporal. Com efeito, enquanto tal, o ‘esse’ não pode ser predicado de
coisa alguma. Se aponto para algo e digo “Esse é esse”, só posso estar dizendo
que esse é o mesmo que esse, o que não transforma o ‘é isso’ em um predicado.
Chegamos agora à segunda frase
da citação de Aristóteles: “Uma substância é aquilo que é um esse tal-e-tal e
também é separável”. Essa segunda caracterização é a mais completa e abrange
também a primeira, resolvendo para Aristóteles o problema da definição da
substância. Isso é possível porque o demonstrativo “esse tal-e-tal” (tode ti)
aponta para o que pode ser capturado pela linguagem. Como? Ora, primeiro
através da localização espaço-temporal obtida pelo “esse”; depois através de
qualquer atribuição que a ele seja acrescentada, ou seja, o tal-e-tal. Assim,
com o demonstrativo ‘esse’ nós nos referimos a um algo, um indivíduo
espaço-temporalmente localizado, sem determiná-lo através de propriedades, algo
que sabemos apenas ser material. Trata-se por isso daquilo de que podemos
predicar outras coisas, mas que não pode ser de nada predicado. Mas se nós nos
limitássemos a definir a substância como qualquer coisa espaço-temporalmente
localizável pelo ‘esse’, estaríamos condenados a deixá-la fora da linguagem.
Contudo, podemos acrescentar ao local indicado pelo demonstrativo o tal-e-tal,
a predicação da essência da coisa, da forma substancial, que para Aristóteles
(como bom biólogo) era primordialmente a predicação de uma espécie zoológica ou
botânica.
Suponha agora que nos
encontremos diante de Sócrates dizendo: “Isso é um homem”. Essa é uma frase do
tipo “esse tal-e-tal’. Através dela nós indicamos uma coisa que não pode ser
predicação de coisa alguma e dela predicamos a humanidade. Pois bem: ser uma
coisa localizada que é humana é ser uma substância no sentido mais próprio. A
substância torna-se assim capturada pela linguagem como contendo uma forma que
é uma essência e que, por isso mesmo, pode ser definida. Afinal, Aristóteles
define o ser humano como um animal racional. Se digo “Isso é um homem”, estou
dizendo o mesmo que “Isso... é um animal racional”, ou seja, estou definindo o indivíduo
designado pelo demonstrativo ‘isso’ como sendo um animal racional. Como é
sabido, para Aristóteles uma definição real seria aquela na qual distinguimos a
diferença específica de um gênero próximo. O gênero próximo é o da animalidade
e a diferença específica é a da racionalidade. A espécie natural, à qual
pertence o que é indicado pelo ‘isso’, é a dos animais racionais.
Finalmente, faltou ser
considerada a segunda cláusula da segunda frase: a substância “também é separável.”
Ele quer dizer com isso que ela é ontologicamente fundamental. Melhor dizendo:
A substância como um todo apresenta uma unidade intrínseca, não sendo um mero
agregado. (Uma mão não é uma substância, pois não possui unidade intrínseca, um
monte de lixo também não, pois é mero agregado, mas um certo homem é uma
substância). Espécies naturais geralmente possuem unidade intrínseca.
Podemos agora concluir. A
substância aristotélica não pode ser a matéria do indivíduo, uma vez que ela é
por si mesma incognoscível e indizível. Ela deve ser ou (a) o composto
da matéria (indicada pelo ‘esse’) e da forma indicada pelo seu complemento como
‘o tal-e-tal’) ou então a (b) espécie como forma substancial. Como a espécie
pode ser dita de muitas coisas (por exemplo, dos muitos homens que são seres
humanos, e não apenas de Sócrates) parece que devemos concluir que a substância
é o composto. Aristóteles não parece ter concordado com isso, reservando um
lugar privilegiado para a forma como espécie. A razão não é difícil de ser
encontrada. Ele queria reservar um lugar especial para a forma como espécie
substancial porque ele acreditava existirem substâncias que são formas sem
matéria, como é o caso de seu Deus, das esferas celestes e da razão humana.
Trata-se em meu juízo de uma recaída no platonismo com a qual não precisamos
concordar.
Aristóteles adicionou à
predicação da forma substancial mais nove gêneros supremos por ele chamadas
categorias (katêgoria = predicado), que ele teria já encontrado em
Platão. As categorias, o que de mais fundamental pode ser predicado da
substância primeira, podem ser dispostas na seguinte tábua:
Substância Exemplo: “(esse) ser humano” (Sócrates).
Qualidade é sábio,
Quantidade tem 160 m de
altura,
Relação é Casado com
Xantipa,
Onde está na
Ágora,
Quando pelo meio-dia,
Posição de pé,
Ter segura um bastão,
Fazer está falando,
Ser afetado está respondendo a uma pergunta.
Para Aristóteles, tudo o que podemos dizer da substância está contido na
classe de predicados por ele chamados de categorias. Por exemplo: apontando
para Sócrates (o indivíduo, a substância primeira) eu posso dizer uma frase do
tipo “Esse tal-e-tal”, no caso “Esse é um homem”, indicando a substância como
forma definível (homemdf = animal racional) do indivíduo. Mais
além, eu posso dizer que esse homem (Sócrates) é sábio (predicando-lhe uma qualidade),
que ele tem um metro e sessenta de altura ou que pesa 68 Kg. (quantidade), que
é marido de Xantipa (relação), que se encontra na Ágora (onde) na manhã do dia
23 de julho do ano 398 a.C. (quando), que está de pé (posição), que segura um bastão
(ter), que está falando (fazer) e que está respondendo a uma questão (está sendo
afetado).
Aqui podemos considerar uma
última propriedade da substância que terá grande importância no sistema de
Aristóteles: o fato de que a substância serve de substrato para a mudança. Como
suporte para as outras categorias, a substância deve poder permanecer a mesma
no tempo enquanto as outras categorias se modificam. Por exemplo, esse ser
humano, Sócrates, é o mesmo e dele predicamos a sapiência. Mas não predicamos a
sapiência dele quando ele era criança, nem que ele tinha 160 cm de altura, nem que
era casado com Xantipa. Além disso, quando bebê ele não ficava de pé; ele
andava de gatinho e sequer sabia falar. Mesmo assim o Sócrates criança é
certamente o mesmo Sócrates foi condenado a beber cicuta aos 70 anos.
Resumindo: as características
mais distintivas da substância são as de que (1) ela é o sujeito último dos
predicados e não é para ser predicada de coisa alguma; (2) a substância é um
ente capaz de subsistir por si mesmo e na independência do resto; (3) ela é algo
intrinsecamente unitário, não podendo ser mero agregado (um monte de lixo não é
substância) ou parte de algo (eu sou uma substância, mas minha mão não é); (4)
ela pode servir como substrato da mudança.
3
Um problema que surge aqui é o quanto tem a ver a forma aristotélica com
as ideias de Platão. Seriam as formas aristotélicas universais abstratos? Há
algumas evidências textuais mostrando que sim. A forma aristotélica seria algo
comum a um número maior ou menor de indivíduos, embora sempre dependente deles
para existir. Eis o que ele escreve na Metafísica:
O que resulta, enfim, é uma forma de determinada
espécie, realizada nessas carnes e ossos: por exemplo Cálias e Sócrates; e eles
são diferentes pela matéria (ela é diversa nos diversos indivíduos), mas são idênticos
pela forma (a forma é, de fato, indivisível).
Isso justifica a observação de que a diferença entre a ideia platônica e
a forma aristotélica é que se o mundo deixasse de existir as ideias platônicas
continuariam a existir, enquanto as formas aristotélicas desapareceriam. A
forma aristotélica funciona aqui como um lençol transparente, firmemente colado
a todos os objetos que dela compartilham. Contudo, caso adotada essa sugestão
conduz Aristóteles a problemas ainda maiores do que Platão com a sua doutrina
das ideias. Como pode, afinal, a forma universal de Aristóteles permanecer a
mesma e ainda assim se dividir entre os diferentes objetos aos quais se aplica?
Aristóteles não é, porém,
consistente com essa sugestão. Na seção 13 do livro Z da Metafísica
ele oferece argumentos que parecem destrui-la. Talvez a sugestão dos filósofos
medievais de que para Aristóteles não existem universais nas coisas (in
rebus), mas somente na mente (post rem), após abstração, seja a
maneira mais sensível de interpretar o filósofo. Mesmo assim não parece que a
mente finita, tal como a entendemos hoje, tenha lugar para o universal abstrato
post rem.
Considerações como essas
permitiram a Aristóteles analisar a substância como uma combinação de matéria
(hylê), exemplificada como o referente do “isso”, e de forma (eidos
ou morphê), exemplificada pelo referente do “tal-e-tal”. A forma é aqui o
remanescente da ideia platônica. Assim como para Platão nós só podemos adquirir
conhecimento do mundo visível porque ele contém cópias imperfeitas das formas,
Aristóteles irá dizer que é pela forma que identificamos as coisas do mundo
visível, mas sem pretender que existam forma (ou ideias) separadas da matéria,
como fazia Platão. Diversamente de Platão, para Aristóteles a forma só existe
no particular, no indivíduo, mas de modo idêntico ao de Platão, para
Aristóteles é só a forma que torna o indivíduo inteligível. É a forma que
permite caracterizar a substância como possuindo uma unidade intrínseca, como
sendo algo determinado, algo que subsiste por si e separadamente das outras
coisas. Assim, a matéria de uma esfera de cobre é o conteúdo material do cobre.
A matéria de um corpo humano seria para Aristóteles formada de uma composição
de terra, água, fogo e ar, ou, para nós, de moléculas de água e da química do
carbono. A forma de um estado, segundo Aristóteles, é dada por sua
constituição, mas a sua matéria é dada pela sua população. Contudo, a matéria
também pode ser vista como forma e só nesse sentido ela é cognoscível. O conteúdo
material da bola de cobre é formado por moléculas de cobre. A água do corpo
humano é formada por moléculas. A população de um estado é formada por pessoas.
Tudo isso são formas, mas de modo mais homogêneo. Para tornar esse ponto mais
claro, considere as partículas subatômicas como a matéria, ou ainda, as
microcordas, caso a teoria das cordas seja correta. Nesse último caso todo o
universo pode ser visto como sendo composto de uma mesma matéria, que seriam as
cordas. E o resultado seria uma grande homogeneidade. Por isso podemos dizer
que o responsável pela heterogeneidade das determinações específicas, pela
diversidade, é a forma. Resta uma pergunta: Existiria uma matéria última, não
redutível à nenhuma forma? Esta seria a assim chamada “matéria prima”, a
matéria por si mesma, sem qualquer qualificação formal. Mas esta é por
definição incognoscível.
4
O próximo ponto é a questão da mudança. Desde Heráclito é aceito que o
mundo sensível é caracterizado pela mudança, movimento, transformação.
Para dar conta da mudança
Aristóteles lança mão de uma nova dualidade conceptual: a distinção entre potência
(dunamis) e ato (energeia). A potência é definida como a
capacidade de vir a ser, enquanto o ato é simplesmente a capacidade de ser. O
melhor exemplo explicativo é o de uma semente. Uma semente pode dar origem a um
abacateiro. Uma outra semente, quase igual à primeira, pode dar origem a uma
mangueira. Uma semente tem o potencial de se transformar em uma coisa ou em
outra. A semente do abacateiro é abacateiro em potência, que posteriormente se
transforma no abacateiro em ato. Para Aristóteles toda substância não só é
constituída de matéria e forma, mas ela própria é ao mesmo tempo sempre
potência e ato. Mas há em toda substância uma correlação entre o que dizemos
ser matéria ou potência de um lado e o que dizemos ser forma ou atualidade de
outro. Uma substância possui não somente matéria e forma, mas também potência e
ato. Ela é ato na forma que ela presentemente possui. Mas ela é também potência
pela capacidade que ela possui de atualizar-se em outra forma. Por exemplo: uma
semente tem a potencialidade de se transformar em uma árvore, mas ela não é
árvore em ato, mas apenas em potência. A árvore foi semente em potência, mas
agora é árvore em ato, ela adquiriu essa forma. Ademais, para Aristóteles
matéria e forma são geralmente uma só coisa em diferentes aspectos. A matéria é
a forma em potência, enquanto a forma é a matéria que se atualizou. A matéria é
atualizada pela forma, que por sua vez atualiza a matéria.
A distinção entre ato e
potência permitiu a Aristóteles responder a Parmênides quando este afirmou que
o ser é imutável, pois do não ser não pode advir o ser, caso contrário o não
ser seria, e do ser não pode advir o não ser, a menos que o ser não seja. A
resposta de Aristóteles foi a seguinte: O ser pode advir do não ser porque o
não ser já é ser em potência, enquanto o não ser pode advir do ser porque o ser
já é não ser em potência. Por isso, pensava ele, a mudança é no final das
contas a passagem do ser para o ser: de um ser em potência para o ser em ato.
Como complemento a sua
explicação da mudança, Aristóteles ainda adiciona a famosa teoria das quatro
causas, que tão facilmente se confunde com um arcaísmo filosófico. Talvez
porque a palavra causa seja aqui enganosa. Na verdade, trata-se de uma teoria
dos elementos envolvidos na explicação da mudança enquanto ela tiver caráter
teleológico. Esses elementos são a causa material, a causa formal,
a causa eficiente e a causa final.
Para tornar isso claro, imagine
que um artífice pretenda esculpir uma estátua. Ele precisará primeiro de uma
pedra de mármore. Essa é a causa material. Além disso ele precisa ter uma ideia
do que irá fazer, por exemplo, uma estátua do deus Apolo. Essa é a causa
formal, a forma ainda não atualizada. Além disso o escultor precisará trabalhar
no bloco de mármore de modo a esculpir a estátua do deus Apolo. Essa é a causa
eficiente. Por fim, a estátua do deus Apolo deverá ser colocada no templo, de
modo a servir como objeto de adoração: essa é a assim chamada causa final, o
propósito de toda a ação.
A teoria das quatro causas não
serve apenas para explicar as ações humanas intencionais. Ela serve à biologia
de Aristóteles. Assim, um pequeno arbusto para crescer e se transformar em uma
árvore precisa de uma matéria, a madeira da qual ela é constituída. Mas ele
também precisa de uma forma: o arbusto tem a finalidade inscrita em sua
genética de se transformar em uma árvore. Para que isso aconteça também estão
envolvidos elementos constitutivos da causa eficiente: é preciso haver luz,
água e elementos nutritivos adequados para que o arbusto se transforme em
árvore. Há, finalmente, a causa final: a árvore servirá para dar frutos e dessa
maneira permitir a continuação da espécie à qual ela pertence.
A teoria das quatro causas não
serve, obviamente, para explicar eventos causais no mundo físico. Se um asteroide
por acaso cai sobre o planeta Júpiter, a finalidade do asteroide não é a de
cair no planeta Júpiter, nem é o caso de que dessa maneira ele realize a sua
forma, digamos, a de aumentar minimamente a massa desse planeta gigante.
5
Uma última questão diz respeito ao Deus aristotélico, ou seja, à
definição de metafísica como teologia e investigação das causas últimas. O
argumento se inicia com uma questão acerca do tempo. Teve o tempo um início? A
resposta é que se o tempo tivesse um início então faria sentido perguntarmos o
que havia antes do tempo. Mas ao usar a palavra ‘antes’ já estamos pressupondo
o tempo. O mesmo acontece se nos perguntarmos se o tempo teria um fim. Nesse
caso será possível perguntar o que acontecerá depois do tempo. Mas ao usar o
advérbio ‘depois’ nós também pressupomos o tempo. A conclusão é que o tempo não
tem nem início nem fim: o tempo é eterno. Contudo, Aristóteles também percebeu
que a passagem do tempo é intrinsecamente ligada à mudança, ao movimento. Esse
é um ponto passivo. Nós marcamos o tempo através de relógios que se valem de mudanças
cíclicas com idêntica duração. Era assim nos tempos primevos, quando os homens
contavam os dias e os anos. E é assim ainda hoje quando podemos fazer uso de
relógios atômicos. E quando percebemos o passar do tempo é porque a natureza
nos dotou de relógios biológicos internos. Assim, parece realmente plausível
que em um mundo sem mudança o tempo deixaria de existir.
Tentando conceber um tempo sem
mudança, imagine que nosso universo inteiro se congele por um ano, permanecendo
durante todo esse tempo sem qualquer mudança. Pode parecer possível, não? Mas quando
imaginamos isso, nós como que nos postamos fora do universo, de uma perspectiva
sob a qual somos plenamente capazes de averiguar a passagem do tempo, por
exemplo, por possuirmos relógios capazes de medir a passagem de um ano. Mas nesse
caso não estamos considerando mais o universo como um todo, pois nós e nossos
relógios, que estamos fora, também devemos pertencer a ele dele. A conclusão é
que não faz sentido dizer que o universo, agora entendido como absolutamente
tudo o que existe (nós e nossos relógios incluídos) possa ficar congelado por
um ano, pois ele não poderia incluir relógios capazes de marcar esse tempo.
Aqui Aristóteles tinha razão.
Tendo concluído que o tempo e a
mudança são eternos, Aristóteles se pergunta sobre a causa última de todas as
mudanças, de todos os movimentos, que para ele não é mera causa eficiente, mas
causa final, um telos. Ele pensa que se o tempo-mudança é eterno, então
a causa do tempo-mudança precisa ser também eterna. Contudo, aquilo que gera as
sequências causais não pode ser algo temporal, pois a admissão disso implicaria
em uma causa dessa causa e em uma progressão infinita de causas finais. Ora, para
os gregos, a ideia de uma progressão infinita era absurda. Como conclusão, deve
existir uma causa que seja incausada, um movente imóvel, que Aristóteles chama
de Deus (theos). Se tempo e mudança se encontram intrinsecamente
ligados, a causa incausada é causa do próprio tempo. Essa causa incausada
precisa ter três características: ela precisa ser eterna, imóvel e
ato puro. Se não fosse eterna o tempo-mudança que ela causa não seria
eterno. Se fosse móvel ela seria causada e não seria mais a causa primeira, o
primo motor. Se contivesse matéria ela teria potência e seria capaz de mudança,
logo deve ser ato puro. Mas ela deve ser o motor imóvel do universo, sendo
através dela que Aristóteles oferece a razão última do mundo sensível.
Mas então, como é possível que
o deus aristotélico movimente sem se movimentar? Ora, precisamente porque ele
não é causa eficiente, mas causa final. Para Aristóteles, da mesma forma que
somos atraídos pelo bem e pelo belo, somos atraídos por Deus. O primo motor
move o mundo da mesma forma que o objeto amado atrai o amante. É por algo que
ele chama metaforicamente de “amor” que o mundo se move em direção a Deus.
Quanto a esse Deus imaterial
direcionador do universo, Aristóteles especula que ele deva ser puro
pensamento. Como esse pensamento deve ser perfeito, ele não pode pensar em
nada que seja inferior a si mesmo. Por conseguinte, ele deve ser o pensamento
que se pensa a si mesmo, pensamento do próprio pensamento.
Estamos aqui muito longe do Deus pessoal da cristandade,
que criou o mundo e responde aos clamores humanos, e mesmo das deidades
mitológicas, que intermediavam as ações humanas nos poemas épicos que os gregos
tanto prezavam. O deus aristotélico não se preocupa com o mundo. Somos nós que,
em nossa busca de perfeição, movemo-nos em direção a ele.
Como se tudo isso não bastasse.
Aristóteles adiciona que se Deus é pensamento então ele é vivo. Afinal,
pensamento e inteligência são inerentes à vida. Como ele escreve:
Se nessa feliz condição em que às vezes nos
encontramos Deus se encontra perenemente, isso nos enche de maravilha. E se ele
se encontra numa condição superior, é ainda mais maravilhoso. E ele se encontra
efetivamente nessa condição. E ele também é vida porque a atividade da
inteligência é vida. E ele é precisamente essa atividade. E essa atividade
subsistente por si é vida ótima e eterna.
Diversamente do Deus cristão, o primo motor aristotélico não pode ser
onisciente nem onipotente, posto que ele nem pensa o mundo nem opera sobre ele.
Mas ele não é só eterno como também onipresente: Aristóteles afirma que o
primeiro movente imóvel está em todo o universo e tudo move e, sendo assim,
também se encontra dentro de nós, movendo-nos. Deus, como o pensamento do que
há de mais excelente (ele mesmo) é pura felicidade e em sua contemplação também
consiste a nossa maior felicidade.
Aristóteles queria saber quantas
substâncias imóveis existem na esfera celeste e foi perguntar a um amigo
astrônomo. Como o número de movimentos celestes rotatórios eternos é 55, o
número de substâncias imóveis deve ser o mesmo. Mas ele acreditava haver além
disso uma causa incausada superior às outras, que os ordenasse e que seria primo
motor. O cristianismo transformou o primo motor aristotélico em Deus
e as outras substâncias imóveis em inteligências angélicas.
Einstein acreditava que as ideias vêm de Deus.
Ingmar Bergman certa vez notou que Deus está no coração dos homens Teóricos do
caos falam de organização espontânea e de atratores estranhos. C. S. Peirce
postulou em uma evolução por amor criativo operando no cosmo (o agapismo). Alguns
desconfiam que a terceira lei da termodinâmica, prevendo a morte do universo
pelo constante e inevitável aumento da entropia, possa não ser universal. Kant,
em sua Crítica da Razão Pura, refinou o conceito de Deus na forma mais
aceitável de uma ideia da razão, ou seja, um conceito diretivo, que
serve apenas para orientar nosso entendimento em direção a sínteses cada vez
mais amplas. As intuições que levaram Aristóteles à postulação especulativa do
que ele chamou de causa primeira podem não ser tão incríveis nem se encontrar
tão remotamente distantes de nós quanto parecem à primeira vista.
6
Aristóteles defendeu famosamente o princípio da não contradição como
sendo o mais fundamental no livro IV da Metafísica. Segundo ele, em sua
versão ontológica o princípio diz que não é o caso que uma coisa seja ela mesma
e diferente dela mesma ao mesmo tempo e sob a mesma perspectiva. Quem quiser
negar esse princípio, escreve ele, deverá ficar mudo feito um tronco de árvore,
pois ela não poderá dizer algo sem negar o que disse ao mesmo tempo. Essa
pessoa não conseguirá sequer negar o princípio, pois negá-lo assumindo sua
falsidade será a mesma coisa que também afirmá-lo.
O princípio da não-contradição
pode ser linguisticamente expresso como dizendo que um enunciado não pode ser
verdadeiro e falso no mesmo sentido e ao mesmo tempo. Formalmente ele pode ser
expresso como “~(A & ~A)”. Há dois princípios irmãos que podem ser
adicionados a ele. O princípio da identidade e o do meio excluído. O princípio
da identidade nos diz que uma coisa é ela mesma ou que um enunciado implica
nele mesmo. Formalmente podemos escrevê-lo como A → A. O princípio do meio excluído, por sua vez, nos diz que ou uma coisa
é ela mesma ou ela não é ela mesma, não havendo uma terceira alternativa. Ele pode
ser formalmente apresentado como “A v ~A”. Esses princípios são logicamente relacionados,
pois se uma coisa é ela mesma (ao mesmo tempo e sob a mesma perspectiva), ou
seja, se A → A, então não pode ser que ela seja e não seja ela
mesma, formalmente: ~(A & ~A). E se uma coisa é ela mesma, então ela não
pode ser outra coisa senão ela mesma, ou seja: A v ~A. Eis como essa equivalência pode ser demonstrada
aplicando-se tabelas de verdade:
A (A → A) ≡ ~(A
& ~A) ≡ (A v ~A).
V v v v
F v v v
Esses princípios se equivalem e, para quem leva a sério a lógica
clássica, é fácil demonstrar que essas equivalências são verdades lógicas
(tautologias). Contra a objeção de que existem afinal inúmeras verdades lógicas
é possível responder que essas são as mais simples que podemos encontrar, daí
serem eles com razão candidatos às leis fundamentais sobre as quais se baseia o
que hoje chamamos de cálculo dos enunciados.
É muito difícil rejeitar esses
princípios. Considere o mais disputado entre eles, que é o princípio do terceiro
excluído: “A v ~A”. Pode-se argumentar que deve haver algo que não é nem A nem
não-A. Por exemplo, considere a frase “Está chovendo”. Pode ser que seja noite
e que exista algo como um sereno, com gotículas de água no ar que parecem estar
descendo lentamente... mas não será apenas uma névoa? Não, não há como
decidir... Nesse caso se alguém disser “Está chovendo” não haverá como se dizer
que a frase é verdadeira ou falsa. Alguém poderá então concluir que esse é um
caso de rejeição do terceiro excluído ou ~(A v ~A). Mas uma consideração mais
cuidadosa do caso mostra que isso é incorreto, pois no contexto considerado o
proferimento “Está chovendo” deixa de fazer sentido, o mesmo acontecendo com
sua negação. Em casos como esse nós não somos capazes de enunciar coisa alguma.
Nós apenas suspendemos o juízo, posto que o proferimento é inverificável e,
portanto, sem sentido factual. Podemos sempre precisar
essa fronteira de modo que pronunciamentos limítrofes possam outra vez
expressar enunciados verdadeiros ou falsos, no caso acima construindo um
medidor capaz de nos dizer mais exatamente quando é verdadeiro ou falso que
está chovendo.
7
Antes de dizer algo sobre a contribuição de Aristóteles para a ética é
importante fazer um mapeamento geral das concepções morais. Existem três
momentos da ação moral. O primeiro deles é o da intenção: uma pessoa pode
querer fazer o bem ou o mal. O segundo deles é o da ação: a pessoa
realiza uma boa ou má ação. O terceiro deles é o da consequência da
ação, que também pode ser boa ou má. Geralmente, a boa intenção conduz a uma
boa ação, a qual conduz a uma boa consequência.
As éticas que colocam a origem do valor ético
na intenção do agente são chamadas de éticas da virtude. Esse foi o caso
das éticas gregas em geral, que não eram individualistas e tinham como fim
mostrar como o cidadão poderia melhor servir à polis. As éticas que
colocam a origem do valor ético na ação são as éticas ditas deontológicas.
Elas procuram estabelecer regras diferenciadoras da boa (ou má) ação, a exemplo
dos dez mandamentos cristãos. Finalmente, há as éticas que põem a origem do
valor na consequência da ação. Essas são as éticas consequencialistas.
Há três tipos de consequencialismos: o egoísmo ético, que põe a origem
do valor moral no fazer bem a si mesmo (ex: uma sociedade de criminosos). O altruísmo
ético, que põe a origem do valor moral no fazer bem aos outros (ex: os
Amishes), e o utilitarismo, que busca fazer bem tanto ao agente quanto
às outras pessoas que possam estar envolvidas.
Certamente, tanto a intenção
quanto a ação e a consequência têm importância moral. E é claro que quando
julgamos uma ação isolada o que mais nos importa avaliar é a intenção do
agente. Uma pessoa pode, com a melhor das boas intenções, realizar uma ação que,
contra todas as expectativas, se demonstra funesta! Mas do ponto de vista do
que um povo e uma cultura através do tempo devem estabelecer como sendo o valor
moral, aquilo que realmente importa são as consequências. Ou seja: as
consequências geralmente boas são aquilo que determina quais as regras que, uma
vez seguidas, trazem boas consequências tornando-se, portanto, boas. E as
consequências geralmente boas, elas próprias geralmente resultantes do
seguimento de boas regras, são o que determina o que é para ser contado como
virtude.
Alguns exemplos esclarecem o
que quero dizer. O que consideramos virtude pode variar culturalmente: nos
tempos homéricos a força física era considerada uma virtude, e nos romances de
Jane Austen a constância é uma virtude, uma vez que ajuda a assegurar um
casamento bem sucedido. Sem dúvida entre Esparta a
disposição para cometer atos violentos era mais valorizada do que em Atenas.
Tratava-se de uma sociedade guerreira que precisava submeter a qualquer preço o
povo nativo escravizado, que era mais de 90% da população. A consequência boa
determinava o que seria a ação boa, o que, sob a perspectiva dos cidadãos
determinava o que seria considerado virtude.
A conclusão é que a origem – o
centro irradiador – do valor moral é para ser encontrada nas éticas
consequencialistas. Mas qual delas? O egoísmo ético tem a limitação de restringir
a felicidade social: quando cada qual age só pensando em seu próprio bem resta
pouco lugar para o amor, para a amizade, para o exercício do que há de bom na
natureza humana. O mal de algumas sociedades hoje economicamente muito desenvolvidas
é que as pessoas “vivem para si mesmas”, sendo o bem comum mediado por leis
impessoais, restando pouco espaço para uma natural interação altruísta. O
altruísmo ético, por sua vez, limita a liberdade individual. Há algumas regiões
tropicais nas quais vivencia-se um altruísmo coletivo que faz bem a todos, mas
sob o preço de um forte compartilhamento de gostos e valores através do qual o
desenvolvimento individual fica comprometido. O melhor dos consequencialismos
parece ser aquele que propõe um balanço entre o egoísmo e o altruísmo: o
utilitarismo. Segundo o utilitarismo a boa ação é aquela da qual resulta um bem
maior para todos, inclusive para o agente. Um bom utilitarismo seria capaz de
determinar as melhores regras e as melhores virtudes na melhor sociedade. Desenvolver uma forma
adequada de utilitarismo é, contudo, uma tarefa mais complexa do que se possa
pensar. (Uma sugestão nesse sentido encontra-se na seção 6 do capítulo VI)
Aristóteles via a função da
ética como a de maximizar a felicidade (eudaimonia) coletiva de modo a
possibilitar a boa vida na sociedade e valores gerados no interior da polis.
Em vista disso ele inventou uma ética do justo meio. A ação moralmente correta
é aquela feita por um agente que sabe escolher o justo meio entre o extremo do
excesso e o extremo da falta. Assim, uma pessoa corajosa é aquela que sabe
escolher o justo meio entre a temeridade e a covardia. Uma pessoa liberal é
aquela que sabe escolher o meio caminho entre a avareza e a prodigalidade. Uma
pessoa justa é a que é capaz de escolher o meio caminho entre os ganhos e as
perdas... Certamente, essas medidas devem variar de pessoa para pessoa e sob
diferentes circunstâncias sociais.
Para Aristóteles o
comportamento virtuoso é algo que pode ser socialmente aprendido: é como
aprender a atirar os dardos no centro do alvo. Com efeito, é preciso exercício e
experiência junto às pessoas certas em uma sociedade suficientemente bem
ordenada para que alguém se torne capaz de escolher o justo meio.
Uma
pergunta que surge é sobre quem decide qual é o justo meio. Um senhor de
escravos pode se comportar segundo o justo meio da sociedade em que vive. Ele
será considerado virtuoso pelos seus pares e talvez até mesmo pelos escravos,
mas nada do que faz será considerado virtuoso pelos que consideram as regras
dessa sociedade perversa. A ética do justo meio encontra parece aqui encontrar
seus limites.
IV
FILOSOFIA EM TEMPOS DIFÍCEIS:
HELENISMO, ROMA, IDADE MÉDIA
A morte de Alexandre em 123 a.C. deu origem a um período conturbado e
instável chamado de helenístico, que por convenção durou até 30 a.C., ano da
morte de Marco Antônio e Cleópatra. Alexandre havia conquistado a maior parte
do mundo conhecido, mas as suas diferentes regiões acabaram por ser governadas
por seus generais, que passaram a disputá-las violentamente entre si. Atenas
entrou em decadência e passou a ser rivalizada por Alexandria como centro
cultural. Na última foi construída a famosa biblioteca de Alexandria, que se
estima ter possuído meio milhão de volumes que mais tarde foram, em sua grande
maioria, destruídos pelo fogo e pela ignorância e superstição humanas. Após as
invasões romanas da Grécia por volta de 140 a.C., o centro cultural do ocidente
acabou se deslocando para Roma.
As escolas filosóficas mais bem
sucedidas nesses tempos difíceis foram o epicurismo, o estoicismo
e o ceticismo, refletindo as atribulações da época. Para Hegel, essas
escolas exprimiam o desespero e a impotência do indivíduo, que se via a si
mesmo diante de poderes que ele era incapaz de influenciar. Com efeito, há em todas
elas um elemento de consolação, que nos faz pensar em nossos manuais de
autoajuda. Há certamente níveis cada vez mais altos de autoajuda até chegarmos
a um nível filosoficamente tolerável, ou seja, ao menos suficientemente
coerente e consistente com a cultura herdada e o conhecimento acumulado (não parece
que haja um ponto de corte claro e definitivo). Com isso quero dizer que essas
filosofias se tornaram populares como testemunhas das circunstâncias incertas
da vida humana no mundo helenístico e, principalmente, no mundo romano
hedonista, violento e cruel. O império romano era formado por diferentes povos
que nada tinham em comum, de modo que ele só era mantido coeso pela força da espada,
encontrando-se sempre sob o risco de ser destruído por forças externas ou
internas. Nele a vida tendia a ser caprichosa, perigosa e por vezes sofrida e curta.
1
As filosofias do epicurismo, estoicismo e ceticismo eram seguidas por
tribos humanas diversas, na medida em que seus membros encontravam sua
afinidade de temperamento maior com uma ou outra delas. Epicuro (341-270 a.C.) foi
um materialista atomista, fortemente influenciado por Demócrito e Leucipo e
preocupado com questões práticas. Para ele não precisamos
temer a morte, uma vez que ela é apenas a separação dos átomos... Não
precisamos nos preocupar com os deuses porque eles não se interessam por nós...
Ele via uma dificuldade em conciliar nosso livre arbítrio com o determinismo
dos atomistas: como podemos ser livres se somos constituídos de átomos que
seguem leis naturais? Sua solução estava na sugestão de que os átomos que
constituem nossas mentes devem ser capazes de desvios arbitrários (clínamen)
através dos quais as cadeias causais do mundo natural são rompidas.
Essa ideia de que nosso livre-arbítrio se deve
a uma capacidade de transcendência dos liames causais do mundo material é hoje chamada
de libertarismo. Ela foi imensamente influente ao ser adotada pela filosofia
cristã e ainda hoje é comum. O problema é que se pensarmos bem, parece que se
introduzíssemos um elemento de puro acaso em nossas decisões e ações, não
parece que com isso aumentaríamos nossa liberdade. Para exemplificar, imagine
que alguém comece a se comportar de maneira inesperada, imprevisível, errática.
Isso não significa que ela se tornou mais livre. Significa apenas que ela
deixou de ser racional. E como designamos como sendo livres somente seres
racionais, parece que o melhor que podemos dizer é que não somos mais capazes
de aplicar o conceito de liberdade a semelhantes decisões e ações.
A filosofia da vida de Epicuro ainda
possui muito de atual. Trata-se de uma filosofia hedonista segundo a qual o
prazer é o mais alto bem. Esse prazer pode ser ativo (kinetic) ou
estático (katastematic). Exemplos de prazeres ativos são os de realizar
ações, como o de satisfazer um desejo ou eliminar a dor. Esse é o caso do
prazer de comer ou de fazer sexo. Já os prazeres estáticos são os de contentamento,
de tranquilidade e de serenidade alcançados pela ausência de perturbações
físicas como a dor e de perturbações da mente como o arrependimento e o medo.
Embora Epicuro valorizasse os prazeres ativos, ele valorizava mais ainda os
prazeres estáticos. Como os prazeres estáticos dependem da satisfação dos desejos
ele classificou os desejos em três grupos: os naturais e necessários, os
naturais mas desnecessários e os não-naturais e desnecessários. Exemplos
de desejos naturais e necessários são os de alimento e de companhia. Esses
desejos são essenciais à felicidade, razão pela qual devem ser sempre buscados.
Os desejos naturais mas desnecessários são os de coisas como o consumo de
pratos refinados, o uso de roupas caras e o sexo. Devemos buscar satisfazê-los,
mas não a qualquer preço. Eles podem ser viciantes, pondo em risco a
tranquilidade característica dos prazeres estáticos. Finalmente, há os desejos
não-naturais e desnecessários, como os de poder, opulência e honras. Eles são
os desejos vãos. Eles não são provenientes de nossa natureza humana, mas
subliminarmente designados pela sociedade. Eles são difíceis de serem
satisfeitos, dado não possuírem um limite superior. Se os alcançamos logo nos
acostumamos com eles e buscamos obtê-los em maior medida. Pior ainda: ao satisfazê-los
passamos a ter medo de perder o que ganhamos, a isso se adicionando a animosidade
e a inveja de outras pessoas com ambições semelhantes, o que destrói os nossos
prazeres estáticos. Por isso os prazeres advindos da satisfação desses desejos
devem ser a todo custo evitados!
O pensamento de Epicuro é importante
no sentido de dar ao prazer um lugar mais apropriado. Durante a Idade Média,
como resultado do que Nietzsche mais tarde chamou de ideal ascético, o
hedonismo epicurista foi desvirtuado como se o prazer devesse ser reduzido ao
prazer físico e como se tudo o que Epicuro defendesse fosse a indulgência nos
prazeres físicos. Mas o prazer possuía para ele uma aplicação mais ampla e suas
reflexões acerca do assunto eram muito mais elaboradas e matizadas do que se
possa pensar à primeira vista.
Não obstante, há coisas a serem criticadas.
Não existe uma fórmula para a felicidade que sirva para todos os seres humanos,
dado que eles são por natureza diversos uns dos outros naquilo de que necessitam.
A Grécia não teria tido o brilhantismo de um governante como Péricles, nem a
ousadia e astúcia de um general como Temístocles se prazeres sociais como os do
poder, da honra e da gloria não fossem apreciados. Além disso, se compararmos o
epicurismo com a filosofia dos gregos antigos seremos capazes de ver inequívocos
traços de decadência: a perda da audácia da filosofia de outrora se fazia
sentir no redirecionamento das preocupações para temas mais corriqueiros, como a
busca de fórmulas para o bem viver. A felicidade suprema era para Aristóteles
um prazer ativo, o compartilhamento do pensamento de Deus, e não de um prazer
estático. Mas tais prazeres sublimados, como os da criação e da descoberta, não
são mais aquilo que Epicuro tinha em mente.
2
Outra doutrina menor que teve grande duração e sucesso foi o estoicismo.
Ele começou com Zeno de Citium (335-263
a.C.), sucedido por Cleantes (-232 a.C.) e por Crysipus (279-206 a.C.). O
sucesso dessa doutrina foi maior em Roma, através de figuras como Sêneca (4
a.C.-65 b.C.), o ex-escravo Epiteto (50-135) e o imperador Marco Aurélio
(121-189 d.C.).
Os estoicos dividiam a filosofia em lógica,
física e ética, que eles viam como interdependentes, excluindo a especulação
metafísica. É famosa a metáfora do ovo: a casca é a lógica, a clara é a física
e a gema é a ética; o entendimento correto da ética pressupõe o entendimento da
física, que pressupõe o domínio da lógica. A contribuição maior para a lógica
foi a investigação de argumentos proposicionais não abrangidos pela silogística
aristotélica. Um exemplo simples é o argumento “Se é dia, então há luz; há dia,
portanto há luz”, no qual usamos a regra do Modus Ponens para obter a
conclusão.
A contribuição para a física consistiu em uma
visão materialista de Deus, da alma humana e do universo. Para os estoicos o
universo contém uma dimensão passiva e uma dimensão ativa. A dimensão passiva é
constituída pela matéria prima. A dimensão ativa é constituída por uma
inteligência que permeia e governa todo o universo, dando-lhe unidade: o logos.
O logos é o princípio universal da razão, também chamado de pneuma (o
sopro vital) ou Deus. Para os estoicos por meio do logos o universo inteiro se
encontra em simpatia consigo mesmo, ou seja, harmonicamente interconectado de
maneira determinista.
A parte mais influente do
estoicismo foi a ética. Para o filósofo estoico a felicidade não consiste no
prazer, como pensavam os epicuristas, mas na virtude. A virtude é o único bem.
Ela consiste em se viver em concordância com o todo, com o logos, com Deus, com
a natureza da qual fazemos parte. Embora o último guia da virtude seja a
opinião pessoal, eles enfatizavam as quatro virtudes cardinais gregas, que são
a coragem, a temperança, justiça e a sabedoria... Para os estoicos há duas
espécies de coisa que dificultam nossa vida: as que podemos e as que não
podemos controlar. Como as paixões mundanas dizem respeito ao que não podemos
controlar, devemos restringi-las ao máximo através do bom uso da razão. Ademais,
as paixões nos afastam da vida virtuosa, donde a razão deve ser usada para
dominá-las. Para alcançar a felicidade é preciso alcançar indiferença (apatheia)
quanto aos desejos, resignando-se diante dos absurdos da vida. Para Marco
Aurélio devemos viver sob a consciência de que a morte está sempre espreita. Como consequência o
estoicismo se torna uma filosofia do autocontrole.
O mundo romano, vão e cruel, fez com que
muitos buscassem refúgio no estoicismo. Um exemplo concreto de comportamento
estoico foi a reação de Marco Aurélio ao comportamento de sua esposa Faustina,
com a qual teve quatorze filhos. Ela foi acusada de ter instigado a revolta de
Ovidio Cássio contra o marido, algo que lhe iria custar a vida. A revolta foi
descoberta a tempo. Marco Aurélio minimizou o castigo dos responsáveis e
destruiu as provas de modo que Faustina não pudesse ser responsabilizada.
Sêneca, um outro estoico Famoso, com notáveis poderes de oratória, sobreviveu a
Calígula, sobreviveu a Claudius, mas não conseguiu sobreviver a Nero, que,
tendo desconfiado de que Sêneca fazia parte de uma conspiração contra ele,
enviou-lhe uma carta ordenando-lhe cometer suicídio. Sêneca cortou os pulsos, o
que seria melhor do que ser supliciado. Esses exemplos nos fornecem uma luz
sobre as razões psicológicas pelas quais o estoicismo fez tanto sucesso no
mundo romano.
Não quero negar que existe
certa verdade no estoicismo: obediência à razão, autocontrole e paz de
consciência são coisas importantes. Mas não precisam ser objetos de fé. Como
Nietzsche notou, o estoicismo busca domesticar uma vida perigosa e traiçoeira
através da fé em uma razão petrificadora das paixões. Parece claro que muito do
estoicismo é um exercício para escapar das vicissitudes de uma vida sobre a
qual se tinha muito pouco controle. Buscava-se refúgio contra as dificuldades de
um mundo desfavorável através da dedicação a uma vida virtuosa. Mas a virtude é
uma noção vaga demais quando coarctada das emoções, que se demonstram
importantes até mesmo para direcionar a vida virtuosa. Afinal, o que é a vida
em concordância com a natureza? Não há uma resposta. Para Marco Aurélio isso
significou absolver sua esposa. Para Júlio Cesar, em uma mesma situação, a ação
virtuosa teria sido certamente muito diversa. Explicar a virtude em termos de
harmonia com a razão universal tem como resultado um inevitável subjetivismo moral.
3
Chegamos, por fim, ao ceticismo. Ele se caracterizava pela desconfiança de
tudo o que pretendesse ser conhecimento. O fundador do ceticismo foi Pirro de
Elis (360-275 a.C.), um contemporâneo de Aristóteles. Pirro nada escreveu.
Também, para que escrever quando não se acredita em nada? Disseram os pósteros
que ele era tão cético que os seus discípulos precisavam alimentá-lo e
vesti-lo… Nesse caso ele deve ter sido muito bem tratado, pois conseguiu viver mais
de 90 anos.
Se Pirro nada escreveu, seu
discípulo romano Sexto Empírico (160-210 d.C.) escreveu bastante, sendo a ele que
devemos muito dos que sabemos sobre o ceticismo antigo. O método dos céticos
para alcançar a paz de espírito era o seguinte:
1) Argumente por uma tese (por
exemplo, viveremos após a morte).
2) Argumente por uma antítese (por
exempo, não viveremos após a morte).
3) Perceba que, após o acúmulo de
argumentos tanto a favor da tese quanto da antítese, nenhuma das duas vence a
outra; esse equilíbrio chama-se isostenia.
4) Uma vez percebido isso você chega à
epoché, à suspensão da crença.
5) Uma vez chegado à epoché
você alcança a paz do espírito: a ataraxia! Você perdeu a necessidade de
pensar e se preocupar com as coisas da mente e já pode agora descansar em paz.
A verdade, porém, é que tese e a antítese dificilmente aparecem como
possuindo pesos perfeitamente idênticos, a menos que torçamos nossos argumentos
no sentido de alcançarmos tal resultado, o que não é difícil na areia movediça
da argumentação filosófica.
O sucesso do ceticismo deveu-se em
parte ao fato de ele representar mais uma forma de evasão diante das
vicissitudes dos novos tempos. Dessas três filosofias da vida helenistas a mais
procedente foi o epicurismo, com sua ênfase no prazer moderado. Talvez por isso
ela tenha sido a mais rejeitada nos difíceis tempos que se seguiram.
4
O filósofo mais original do período romano foi Plotino (204-270), um
neoplatônico. A ideia suprema continua sendo, como em Platão, a do Bem. Mas o
bem é Deus, o indizível Uno. Embora o Uno não tenha criado o mundo conscientemente,
como o Deus cristão, ele o fez por excesso, por transbordamento espiritual. Deus
produziu o mundo através de emanações, que são como o perfume que sai do frasco.
Plotino foi um idealista, de modo que essas emanações espirituais, esses
eflúvios, somos todos nós e tudo o que se encontra ao nosso redor. Há vários
níveis de emanações, as que constituem princípios intelectuais, as que produzem
os movimentos da alma e as que constituem a natureza visível. Tal como as
ideias platônicas, as emanações são cognoscíveis. Além delas só existe um fundo
escuro de matéria incognoscível.
A doutrina das emanações teve
importância para a cristandade por relacionar Deus com o mundo, que no cristianismo
se estabelece entre o Deus pessoal, criador das escrituras, e o mundo empírico.
5
A Idade Média começou no século V d.C., com a queda do Império Romano
ocidental (476 d.C.) e acabou no século XV d.C. A filosofia medieval acabou por
recuperar o nível e as temáticas das filosofias de Platão e Aristóteles, mas
sem alterar o paradigma por eles definido. Os dois mais importantes filósofos
cristãos, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, herdaram respectivamente as
estruturas teóricas desenvolvidas por Platão e Aristóteles e as cristianizaram:
Agostinho batizou Platão e Tomás de Aquino batizou Aristóteles. As Arché,
a ideia do bem, a Substância Pura, o Uno, foram substituídos pelo Deus cristão,
criador e pessoal, enquanto o núcleo central da filosofia medieval continuou
sendo a metafísica, principalmente no sentido de teologia. Afora isso, era vedado
ao pensamento contrariar os cânones estabelecidos pela interpretação das
escrituras sagradas. Não foram poucos os filósofos que foram proibidos de
escrever por terem infringido essa norma. E Giordano Bruno foi queimado vivo
por reincidir.
A figura mais influente no
início do cristianismo foi Agostinho de Aosta (354-430 d.C.). Ele nasceu no que
é hoje a costa da Algéria. Sua mãe, Mônica, era cristã, e o seu pai pagão.
Note-se que embora o império romano só tenha caído em 476 a.C., com a tomada de
Roma pelos bárbaros, a cidade eterna já havia sido saqueada em 410 a.C. e o
império decadente já havia sido praticamente convertido ao cristianismo. Por
isso Agostinho já pode ser considerado o primeiro filósofo medieval.
Em seu livro Confissões ele
descreve a sua juventude como um período de dissipação e sexualidade
exacerbada, que o levou a ter um filho ilegítimo. Essa forma de vida, na qual
sentimento e razão estavam em conflito com a paixão física, o constrangia ao
extremo. Motivado pelo desespero com relação ao seu próprio comportamento ele
se interessou pela religião e pelo problema do mal. Foi de início atraído pelo
maniqueísmo, a seita dos seguidores de Mani (216-276). Para os maniqueístas o
mundo é uma batalha entre dois princípios opostos igualmente poderosos, os do
bem e do mal, e Deus não é todo-poderoso. Durante a luta o bem se torna um
pouco mesclado ao mal. O objetivo do maniqueísta é liberar o bem. Salvos serão
os que forem bem sucedidos em liberar o bem através de uma vida de ascetismo…
Mas cedo Agostinho se decepcionou com o simplismo dessa doutrina, terminando
por converter-se ao cristianismo.
A principal marca do pensamento
agostiniano foi a preocupação com a interioridade. Para ele a finalidade da
vida humana consiste na contemplação de Deus. Só ela é capaz de nos
proporcionar a verdadeira felicidade. E sua mais famosa doutrina foi a da iluminação.
Deus ilumina a alma humana fazendo com que tenhamos acesso às ideias na mente
divina. Assim, é só através da fé que nos tornamos capazes de alcançar a
verdade.
Após Agostinho a Idade Média
bateu forte. Com a dissolução do império romano o sistema de trocas de
mercadoria que funcionava provendo as necessidades diversas em locais diversos
desapareceu. Os reis bárbaros que dividiram entre si os despojos do império
eram pouco organizados e lutavam entre si. O próprio Agostinho em antecipação escreveu:
Vislumbramos a meta a alcançar, mas de permeio está o
mar. E ninguém poderá atravessar o mar do século presente se não for levado
pela cruz de cristo.
A alta Idade Média (séculos V a X) foi um período difícil em que a
Europa foi retalhada em pequenos feudos com duas classes, a dos nobres e a dos
servos. Os servos não eram mais escravos, pois já tinham alguns direitos. Por
exemplo, quando a terra era vendida eles iam juntos. Parece que embora fossem todos
mais pobres, vivia-se em um sistema menos injusto. A cultura ficou restrita a
monastérios cuja função era apenas a de conservar o que os antigos haviam
feito. O cristianismo tornou-se onipresente e foi o principal responsável pelo silencioso,
mas imenso, avanço civilizatório produzido pelo cristianismo – o avanço que possibilitou
o fim da escravidão na Europa. Foi um período de despojamento e de pobreza e
analfabetismo, mas de relativa ordem. Um tempo de constrição da cultura, que de
resto podia esperar.
O único filósofo importante
surgido na alta Idade Média foi o irlandense John Scotus Eriugena (810-877).
Ele escreveu um livro chamado De Divisione Naturae, uma história cíclica
do mundo na qual as coisas se originam de Deus e ao final retornam a Deus. O
universo passa por quatro fases:
1.
A da natureza
não criada e criadora. É aqui o Deus Pai, que é o princípio primeiro e
incriado de todas as coisas, incognoscível e inefável.
2.
A da natureza
criada e criadora. É o Verbo, o mundo inteligível das ideias-arquétipos das
coisas, exprimindo os pensamentos e a vontade de Deus antes da criação do mundo
sensível.
3.
A da
natureza criada e não criadora. É o mundo criado no espaço e no tempo,
no qual vivemos. Ele não cria coisa alguma porque não é o indivíduo que gera os
outros seres, mas a espécie, a qual se determina nos indivíduos em virtude do
Espírito.
4.
A da
natureza não criada e não criadora. Aqui trata-se do próprio Deus, como
o fim absoluto de toda a natureza criada e ao qual tudo retorna. O homem, tendo
se esforçado em imitar o exemplo do filho de Deus, liberta-se do pecado
original e retorna a Deus como alma separada do corpo.
O ciclo tem início em Deus e termina em Deus. Através disso todas as
coisas criadas se tornam manifestação de Deus. Mas isso não é panteísmo, pois
embora todas as coisas estejam em Deus, ele próprio não está nelas, posto que
às transcende. Eriúgena inventou uma filosofia do processo que certamente
influenciou filósofos como Hegel.
No ápice da filosofia medieval encontra-se
Tomás de Aquino (1225-1260 d.C.). Ele foi um grande sintetizador do
conhecimento em obras imensas como a Summa Theologica e a Summa contra
Gentiles. O gênio de Aquino se encontra disperso nos volumes de sua obra
teológica, o que o torna pouco acessível a não iniciados.
No tempo de Aquino a Metafísica
de Aristóteles já havia sido traduzida para o latim. Mas os teólogos e
autoridades papais torciam o nariz para esses escritos. O Deus aristotélico – o
primo motor – não parecia nada com um Deus pessoal preocupado com seres humanos
que havia criado à sua imagem e semelhança, como está escrito na Bíblia. Aquino
conseguiu reverter esse estado de coisas. Ele cristianizou Aristóteles, assim
como Agostinho havia antes cristianizado Platão. Ele fez isso ao introduzir a
distinção entre o reino da razão e o da revelação. A revelação está nas
escrituras e era para ele incontestável. Aqui Aristóteles cometeu erros. Mas a
filosofia de Aristóteles estava certa no que concerne ao mundo natural. O mundo
visível não é constituído de cópias de ideias platônicas, mas é um mundo real e
efetivamente acessível à experiência sensível. Como o mundo natural foi criado
por Deus, que lhe impôs uma ordem, ao investigarmos o mundo ao nosso redor nós
ganhamos algum entendimento da mente divina. A função última da metafísica
aristotélica foi a de auxiliar-nos no entendimento do mundo natural através dos
olhos da razão, ganhando assim maior conhecimento do próprio Deus.
Essa maneira de ver inovadora
foi importante porque deu aos cristãos o direito de ter em alta conta o mundo
empírico, que dessa maneira deixou de ser uma sombra visível do mundo das
ideias platônicas. Isso serviu como incentivo para o desenvolvimento das
ciências empíricas, ao menos antes que Copérnico e Galileu viessem a demonstrar
que o matrimônio entre razão e religião era incestuoso.
Tomás de Aquino é muito
lembrado pelas cinco vias. Argumentos para provar a existência de Deus podem
ser lógicos ou empíricos. O Argumento ontológico de Anselmo Aosta (1033-1109
d.C.), visando provar a existência de Deus, era um argumento lógico. Segundo
esse filósofo, Deus deve ser definido como o que de maior pode ser pensado. Mas
isso significa que ele precisa ter a propriedade de existir, caso contrário nós
seríamos capazes de pensar algo maior do que o que de maior pode ser pensado.
(Tomás discordava desse argumento por pensar que não somos capazes de conhecer
a natureza de Deus a ponto de dar sentido à definição de Anselmo).
Resumidamente, os argumentos empíricos
que Aquino usa para demonstrar a existência de Deus, as chamadas cinco vias, são
(1) Deve haver um motor imóvel que seja causa eficiente do movimento; (2) deve
haver uma causa de todas as causas; (3) tudo é contingente, logo deve haver
algo necessário; (4) as criaturas são imperfeitas, logo deve haver perfeição
absoluta; (5) o mundo é organizado, logo deve haver um ser que o organizou.
Todos esses argumentos parecem-nos
hoje implausíveis. Não precisamos desse horror ao infinito. Não há nada que nos
force a pensar que deva haver uma causa primeira eficiente imóvel, inclusive
porque, obviamente, somos sempre capazes de nos perguntar sobre a sua causa. Uma
sequência potencialmente infinita de causas parece plenamente concebível (negação
de 1 e 2). A necessidade do todo pode
justificar a contingência das partes, não demandando um ser necessário externo
(negação de 3). E a extrema organização do mundo vivo nesse minúsculo ponto do
universo onde vivemos se explica por milhões de anos de evolução natural, que embora
tenham gerado a indescritível organização e refinamento da vida sobre a terra,
tem por função última apenas aumentar o grau de desordem (entropia) no universo
(negação de 4 e 5). Claro, as respostas da ciência não precisam ser
definitivas, mas essas são agora as melhores que temos, e uma fé instintiva não
parece boa alternativa. Aquino se deixa perdoar: afinal, se vivêssemos na
atmosfera medieval, sem o esclarecimento da ciência natural sobre o mundo e sem
os esclarecimentos da psicologia profunda sobre nós mesmos (particularmente
Freud), dificilmente nos libertaríamos da crença nos ensinamentos dos textos
sagrados. Não temos hoje a mesma desculpa.
Entre outras coisas, Aquino contribuiu para a epistemologia. Embora, como
Aristóteles, ele fosse um proto-empirista que não acreditava em ideias inatas,
ele também não era um empirista no sentido de acreditar que a mente fosse um
recipiente passivo. Ou seja: para ele a mente não é uma espécie de balde que
vai se enchendo de conhecimento de modo aleatório, pois ele põe ênfase em suas
capacidades inatas de aprendizado. Ele não aceitava a doutrina agostiniana da
iluminação, mas defendia que possuímos um intelecto ativo provido de uma
luz natural da razão capaz de transformar o objeto no mundo, que é
potencialmente pensável, em objeto atualmente pensável na mente. Mas esse
intelecto ativo não é mais do que uma faculdade natural criada por Deus para
nos permitir conhecer a natureza eterna das coisas. Como em Aristóteles, para
ele o conhecimento começa com a sensação. As coisas particulares são compostas
de matéria e forma. Ao conhecermos os objetos sensíveis nós nos tornamos
formalmente idênticos a eles, formando cópias das formas substanciais e
acidentais em nossos órgãos sensoriais. Por esse meio temos acesso ao que ele
chama de “espécies sensíveis” que a imaginação retém e coleciona na memória
como phantasmas (imagens mentais contendo espécies). É nesse momento que
entra em ação o intelecto ativo. Esse intelecto ativo retira dos phantasmas os
conceitos imateriais e os deposita no que Aquino chamou de intelecto passivo,
que é o quadro negro no qual os conceitos são inscritos. Importante aqui é a
capacidade do intelecto ativo de formar princípios a partir da experiência, a
exemplo do princípio da não-contradição. Aquino explica esses princípios de
modo semelhante àquele pelo qual mais tarde Kant definiu os juízos analíticos:
são juízos nos quais o predicado está contido no sujeito. Exemplo pode ser dado
pelo enunciado definitório: “Homens são animais racionais”. Aqui o predicado
animal racional está contido no conceito de homem.
Ainda mencionáveis (entre
outros tantos) são dois filósofos de língua inglesa que pertenceram ao
escolasticismo tardio: Duns Scotus e William of Ockham (século XIV). A
filosofia de Duns Scotus (1265-1308) é um labirinto de sutilezas escolásticas
que motivou Bertrand Russell a observar que o nome ‘Duns’ vem de ‘dunce’, que
quer dizer, em tradução literal o mesmo que ‘obtuso’ – uma piada de mau gosto.
Scotus foi sagaz ao rejeitar a opinião de
Aquino de que a identidade individual de uma coisa dependeria de sua matéria. A
matéria de uma certa árvore, assim como a matéria de um tronco que flutua na
água, ou a matéria de uma certa cadeira, sendo a madeira de que são feitos
esses objetos, não é suficientemente determinada para nos permitir individuar a
árvore. Quanto à matéria prima, a matéria última de que as coisas são feitas,
além de ser comum a todos os indivíduos, além de indeterminada, não é sequer cognitivamente
acessível.
Já a forma comum, por exemplo, a forma de Sócrates como pertencendo à espécie
humana, é indiferente à individuação por ser comum a todos os homens. Por
conseguinte, nem a matéria nem a forma comum são capazes de individuar qualquer
coisa. Aquilo que identifica precisa ser uma forma própria do indivíduo em
questão, uma “diferença individualizante”, a haecceitas capaz de
distinguir essa árvore das outras árvores e Sócrates dos outros homens.
William de Ockham (1285-1347),
o último filósofo que devo mencionar aqui, foi o defensor de uma forma
conceptualista de nominalismo. O primeiro nominalista, Roscelin de Compiègne
(1050-1125), sustentou a ideia radical de que os universais nada mais são do
que sopros de voz (flatus vocis), ou seja, os sons que produzimos pelo
proferimento de uma palavra como ‘o bem’ ou de um predicado como ‘...é bom’.
Segundo este nominalismo, universais no sentido realista, entendidos como
entidades reais comuns a muitos indivíduos, como o bem, a justiça, o
conhecimento, não podem existir. Ockham também rejeitava a existência de
universais no sentido realista, por acreditar que a mente humana não é capaz de
apreender quididades ou formas gerais. Ele admitia a existência
de universais como conceitos mentais e, de modo derivado, como termos gerais,
mas em qualquer dos casos eles não possuem nenhuma existência metafísica, não
passando de particulares. Em sua filosofia madura ele veio a entender o
universal como um ato de pensar uma diversidade de objetos de uma só vez.
Esse ato, contudo, nada mais é do que uma qualidade singular de uma mente
individual. Ele é universal apenas no sentido de ser um símbolo mental de uma
diversidade de coisas e de poder ser predicado delas em uma proposição mental.
4
Uma
versão contemporânea do nominalismo é aquela segundo a qual termos gerais como
‘o bem’, ‘a justiça’... se referem a classes de objetos. Assim, se dizemos que
Aristóteles é branco e que Platão é branco, ambos os predicados nos dizem o
mesmo porque eles se referem à mesma classe de objetos.
Um problema encontrado no nominalismo de
classes é que termos gerais com intensões (sentidos) diferentes podem ter a
mesma extensão (a mesma classe de objetos referidos). Por exemplo: o termo
geral ‘animal com rins’ se aplica à mesma classe que o termo geral ‘animal com
coração’. Mas nesse caso parece que eles deveriam ter também a mesma intensão, ou
seja, deveriam dizer a mesma coisa, o que nesse e noutros exemplos não é o
caso. Foi aqui que D. K. Lewis (1941-2001) sugeriu a aplicação da noção de
mundo possível ao problema dos universais. Um mundo possível é como
um modo completo e consistente pelo qual o mundo é ou poderia ser. Ora, se a
extensão da expressão conceitual for sua aplicação tanto no mundo atual quanto
em outros mundos possíveis, então a extensão de expressões conceituais com
sentidos diferentes poderia ser diferente. Por exemplo: existem mundos
possíveis nos quais animais com rins não possuem coração e vice versa, o que
justifica a diferença na intensão ou sentido dos termos.
Um problema é que para ser assim parece ser
necessário que os mundos possíveis pertençam à mesma classe dos mundos atuais,
ou seja, que eles existam. Embora um tanto inacreditável, essa posição foi
plenamente aceita por Lewis, para quem os mundos possíveis são tão reais quanto
o mundo atual, com o único problema que eles são inacessíveis a nós. Em que
pese a originalidade da posição de Lewis, a sugestão que apresentarei no
capítulo sobre a teoria dos tropos terá a vantagem de não nos comprometer com
posições especulativas inescrutáveis.
V
A REVOLUÇÃO CARTESIANA
Descartes (1596-1650) foi um grande matemático, criador da geometria
analítica, que permite transformar linhas geométricas em fórmulas algébricas
que prescindem do espaço. Sua maior influência, porém, foi como filósofo. Ele é
tido como o fundador da filosofia moderna. A razão disso foi que ele operou a
chamada revolução cartesiana, que mudou o eixo da filosofia teórica da
metafísica para a epistemologia.
As filosofias helenista, romana
e medieval seguiram o mesmo paradigma estabelecido por Platão e Aristóteles,
que punha ênfase na metafísica. O ponto de partida da filosofia teórica era a
investigação metafísica dos constituintes últimos da realidade, do ser enquanto
ser. Secundariamente se desenvolvia uma investigação epistemológica sobre os a
natureza e os limites de nossas capacidades cognitivas. O vetor da filosofia
teórica vinha do ser para o pensamento. Com Descartes isso se inverteu. Ele já
era ciente do quanto nossa capacidade de fazer investigações metafísicas
dependia de nossa capacidade de conhecer, o que tornou razoável que começasse
por investigar nossas capacidades cognitivas. Ele começou se perguntando pelo
que somos capazes de saber com certeza, para só então, com mais segurança,
chegar a se perguntar acerca daquilo que existe de mais fundamental. O
resultado foi a construção de um edifício filosófico completamente novo, muito diferente
daquele que a tradição grega havia tornado costumeiro. Com isso ele deslocou o
vetor da filosofia teórica do ser para o pensamento. E aqui também a filosofia
se comportou como a coruja de Minerva, pois foi só no crepúsculo do
renascimento que ela tornou a preocupação fundamental dos renascentistas com o
homem uma parte essencial do programa da filosofia teórica.
1
O culprit do desenvolvimento da filosofia de Descartes foi a
disseminação do ceticismo na Europa. A obra de Sexto Empírico, defendendo o ceticismo
pirrônico, havia sido traduzido em 1563 para o latim. O princípio do ceticismo
é o de que tudo pode ser duvidado. Mas se tudo pode ser duvidado, então também
os mistérios da fé. Não seria, pois, um grande passo para o ceticismo colocar
em questão a sobrevivência da alma ou mesmo a existência de Deus. Descartes era
um homem de fé. Ele havia sido educado pelos jesuítas em La Flèxe, o
mais prestigioso colégio da França. Sabemos que ele foi instado por amigos a
fazer uma defesa da religião que refutasse as objeções do ceticismo. O
resultado terminou sendo a grande obra de argumentação e estilo filosófico
chamada Meditações de filosofia primeira (Meditationes de Prima
Philosophia).
O objetivo de Descartes nas Meditações
era encontrar uma certeza que estivesse acima de qualquer possibilidade de
dúvida. Uma vez que a encontrasse ele poderia dela deduzir outras coisas e,
como veremos, dela ele erigiu toda a sua filosofia. Para chegar a essa certeza
ele começou por estabelecer um método, o da dúvida. Segundo esse método, tudo o
que pude ser duvidado é considerado como se fosse falso. Assim, Descartes começou
por aplicar esse método a coisas vistas à distância. Claro, podemos nos enganar
quanto a elas. Uma árvore vista na neblina à distância é por vezes confundida
com um ser humano. Mas não parece que possamos nos enganar quanto a coisas que se
encontram muito próximas de nós. Descartes apresentou então seu argumento do
sonho. Já aconteceu, notou ele, de eu estar aqui diante dessa lareira sonhando
que o fogo estava a crepitar quando na verdade ele já tinha se apagado há algum
tempo. Nada nos garante que a vida não seja um sonho e que as coisas ao nosso
redor na verdade não existam. Se é possível que eu esteja sonhando, posso
descartar o mundo sensível ao meu redor como objeto de incerteza. Para
magnificar seu raciocínio desenvolveu então a dúvida hiperbólica, que é a
dúvida estendida a regiões acima de qualquer suspeita. Para aplica-la ele imaginou
um gênio maligno imensamente poderoso que empregaria toda a sua astúcia para o
enganar. O gênio maligno produziria em Descartes a alucinação de ser um
filósofo vivendo na França no século XVII, quando na verdade ele poderia não
passar de uma alma flutuando isolada no espaço vazio e sendo constantemente
confundida. O gênio seria tão malevolente que até mesmo em seu pensamento
matemático ele estaria sendo enganado. Ao somar 3 + 2 o gênio poderia levar
Descartes a concluir que o resultado é 5, quando na verdade todos sabem que é 6
(se você discorda, caro leitor, pode bem ser que também esteja sendo confundido
pelo gênio maligno).
Contudo, imediatamente após
isso Descartes descobriu algo que é capaz de resistir às mais incríveis
artimanhas do gênio maligno. O gênio não pode, ao fazer com que Descartes se
engane, fazer com que ele não exista. Nem pode ele fazer com que Descartes não
esteja pensando ao ser por ele enganado, uma vez que só se engana quem pensa.
Se alguém pensar que 3 +2 = 7, isso é obviamente falso, mas não é possível que
ao fazer esse cálculo errado a pessoa não exista ou não esteja pensando. Descartes
resume essa descoberta nos enunciados “penso, logo existo” (cogito ergo sum)
em seu Discurso do Método, e no enunciado “Eu sou, eu existo” nas Meditações.
Ao menos no presente, enquanto estou pensando, não há dúvida que eu existo como
ser pensante. Que eu sou uma coisa que pensa (enquanto penso) é uma certeza
indevassável, que além disso possui a clareza e distinção, que para ele formam
o critério de verdade. Para Descartes, tal como o ponto fixo da alavanca, que
permitiria a Arquimedes levantar o mundo, é a certeza do cogito que lhe
permitirá construir seu sistema metafísico.
Nos passos seguintes de seu
argumento Descartes cuida de construir seu sistema de pensamento. Vou resumir. Uma
vez que ele já sabe que existe como ser pensante, ele considera que é capaz de
pensar algo que lhe é infinitamente superior, qual seja, Deus. Ele possui,
pois, uma ideia inata de Deus. Mas Descartes, um ser humano limitado, não seria
capaz de pensar Deus, algo infinitamente superior a si mesmo, a menos que
existisse esse ser infinitamente superior, e que ele tivesse posto em sua na
mente a ideia de si mesmo, a ideia de Deus. Por conseguinte, Deus existe. Mas
Deus é, entre outras coisas, infinitamente bom. Ora, sendo Deus infinitamente
bom, ele não permitiria o engano sistemático, nem a existência do gênio maligno
a nos fazer acreditar na existência de um mundo externo que na verdade não
existe, ou a nos enganar na mais simples operação aritmética. Logo, não só podemos
estar certos de que o mundo externo existe, mas também de que 3 + 2 = 5.
2
É
importante em Descartes a defesa do dualismo interacionista quanto ao que é
hoje chamado de problema da relação mente-corpo. Para ele existem duas
substâncias, (i) a substância extensa (res extensa) e (ii) a substância pensante
(res cogitans). A substância extensa constitui o que hoje chamamos de
mundo físico, conhecido interpessoalmente. Ele considera o atributo da extensão
o mais distintivo do mundo físico, uma vez que podemos ter uma ideia clara e
distinta da extensão. Já a substância pensante é constituída pelas mentes e por
seus conteúdos, incluindo emoções e sensações. A substância pensante pode ser
de dois tipos: (ii-a) as substâncias pensantes finitas, que são nossas almas e
as substâncias angélicas, e (ii-b) a substância pensante infinita, que é
simplesmente Deus.
Descartes tinha uma prova do dualismo de
substâncias. Segundo essa prova, a mente não pode ser parte do corpo porque
podemos duvidar que possuímos corpo, mas não podemos duvidar que possuímos
mente. Contudo, esse argumento de Descartes é equívoco, pois ele ignora o
contexto opaco introduzidos por verbos de atitude proposicional. Considere o
seguinte argumento plenamente válido:
(1)
O objeto a tem a propriedade F.
a = b.
O objeto b tem a propriedade F.
Compare
esse argumento com o seguinte, no qual F cai sob o domínio do verbo duvidar,
que é um verbo de atitude proposicional:
(2)
Maria (a empregada na casa de Dom Diego) duvida que Zorro existe.
Zorro = Dom Diego.
Maria duvida que Dom Diego existe.
O
uso do verbo de crença proposicional introduz um contexto opaco que torna a
conclusão falaciosa. O mesmo acontece no argumento:
(3)
Descartes pode duvidar da existência de seu corpo.
Corpo = mente
Descartes pode duvidar da existência de sua mente.
Como
a conclusão é obviamente falsa, Descartes concluiu que a segunda premissa precisa
ser falsa: a alma tem de ser algo diverso do corpo. Mas seu raciocínio é
enganoso por assimilar a forma do argumento (3) na forma do argumento (3),
quando na verdade sua forma é idêntica a (2). O argumento (3) se baseia em um
argumento que é tornado inválido pelo fato de conter um verbo de atitude
proposicional que introduz um contexto opaco.
Um outro problema é com o dualismo interacionista
com relação ao problema mente-corpo. Para Descartes, a mente e o corpo
interagem causalmente um com o outro. Assim, se eu piso em um caco de vidro
isso causa um evento mental, que é a sensação de dor. Essa sensação
desagradável me faz levantar o pé e, em seguida, fazer um curativo. O problema
que aqui surge é o de explicar como é possível a interação entre algo que não
ocupa espaço, o pensamento, e o mundo extenso, físico. A princesa Elisabeth da
Bohêmia, uma pessoa brilhante, colocou a questão em uma carta a Descartes:
(...) parece que toda determinação do movimento se dá
por meio do impulso à coisa movida, de modo que ela seja impulsionada por
aquela que a move, ou bem,pela
qualificação e figura da superfície dessa última. O choque é exigido pelas duas
primeiras condições e a extensão pela terceira.
Diante
dessa objeção Descartes não conseguiu muito além do reconhecimento de que há
coisas que precisamos aceitar como um mistério.
3
Um
outro ponto de ligação entre a filosofia de Descartes e a discussão
contemporânea diz respeito ao ceticismo radical sobre o mundo externo. A
hipótese do gênio maligno é o que chamamos de uma hipótese cética (hoje preferimos
a hipótese de que somos cérebros em cubas com os nervos ligados a um
supercomputador que nos faz alucinar uma realidade virtual). Com base na
hipótese cética do gênio maligno o seguinte argumento cético pode ser
construído:
Se eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno então eu
não sei se tenho duas mãos.
Eu não sei que não estou sendo enganado por um gênio maligno.
Logo: eu não sei se tenho duas mãos.
Esse
argumento pode ser generalizado, pois o enunciado “eu não sei se tenho duas
mãos” pode ser aqui substituído por qualquer enunciado trivial: eu não sei se
estou de pé, eu não sei se estou vestido, eu não sei se estou vendo alguma
coisa... O ponto do argumento é que se ele for correto então o fato de eu não
saber que a hipótese cética é falsa não me permite mais saber coisa alguma
sobre o mundo externo.
A contraposição do argumento cético é o
argumento anticético. Ele parte da certeza de um enunciado trivial qualquer,
digamos, “eu tenho duas mãos”, projetando essa certeza contra a hipótese cética
assim:
Eu sei que tenho duas mãos.
Se eu sei que tenho duas mãos então não estou sendo enganado por um gênio
maligno.
Logo: eu não estou sendo enganado por um gênio maligno.
O
argumento anticético prova tanto quanto o argumento cético. A questão fica
sendo a de quem pisca primeiro. Isso nos traz certo alivio. Ainda assim, a
inquietação permanece quando pensamos que o cético tem tanto direito de estar
certo quanto o anticético.
4
Não
quis entrar em detalhes sobre o sistema de Descartes aqui sinopticamente
resumido. Quero apenas assinalar a importância de sua filosofia para a
libertação das amarras do pensamento medieval e antigo. Ele destampou a garrafa
da qual saiu a plêiade de gênios filosóficos da modernidade, cada qual criando
uma concepção de mundo própria.
Os
filósofos modernos podem ser divididos em racionalistas e empiristas.
Os racionalistas foram aqueles que, como Descartes, punham ênfase nos
poderes da razão humana de produzir conhecimento com um mínimo de participação
da experiência sensível. Eles importavam para a filosofia o ideal do pensamento
matemático herdado de Euclides. Esse foi o caso dos filósofos continentais,
como Spinoza, Leibniz e o próprio Descartes. Os empiristas, por sua vez, foram
os que punham ênfase na experiência empírica como a fonte principal (senão
a única) do conhecimento humano, minimizando a participação da razão, quando
não a excluindo. Eles importavam para a filosofia o modo de pensar de
cientistas empíricos, como Galileu e Newton. Esse foi o caso dos filósofos
britânicos como Locke, Berkeley, Hume e Stuart Mill. Kant foi quem tentou a
grande síntese entre racionalismo e empirismo, fechando assim o ciclo iniciado
por Descartes.
R. G. Collingwood: The Principles of Art (Oxford: Oxford
University Press) p. 284.
R. G. Collingwood:
The Principles of Art (Oxford: Oxford University Press). 336.
É preciso notar que a admissão de que Deus seja ato puro e de que
existam substâncias imateriais (Deus, as inteligências celestes, a razão
humana) contém uma grave inconsistência. Essas substâncias deveriam ser formas
sem matéria, em outras palavras, deveriam ser formas ou ideias universais
supostamente imutáveis, ou seja, ideias platônicas. Mas Aristóteles não prima
pela consistência quando se trata de introduzir elementos platônicos em seu
empirismo.
Reportata Parisiensia II, d. 12, q. 5, n. 1, 8, 13, 14. Opus Oxoniensis., II, d.3, q. 6, n. 15. Em meu livro sobre a referência dos nomes próprios procurei investigar
essa diferença individualizante como uma regra conceitual de identificação do
nome próprio. Ver
How do Proper Names Really Work? (Berlim: De Gruyter 2023), cap. III.
Tradução de Rafael Teruel Coelho
para a Revista Instauratio Magna, da Universidade Federal do ABC, v. 1,
n. 2, 2021. “Elisabeth a Descartes” – 6/16 Mai 1643. In Oeuv. Res. De
Descartes, vol III, Correspondance. Org. Charles Adam & Paul
Tannery, Paris: Libraria Philosophique, J. Vrin, pp. 660-2, 1996.