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If you wish to be acquainted with my groundbreaking work in philosophy, take a look at this blogg. It is the biggest, the broadest, the deepest. It is so deep that I guess that the narrowed focus of your mind eyes will prevent you to see its full deepness.

sábado, 16 de março de 2024

CLAUDIO FERREIRA COSTA: TEXTOS DE FILOSOFIA - PHILOSOPHICAL TEXTS

          THIS "BLOG" WAS IDEALIZED AS A WAY TO MAKE MY WORK IN PHILOSOPHY MORE ACCESSIBLE. IT CONTAINS MORE THAN 100 WRITINGS, THOUGH USUALLY IN DRAFT FORMS, IN ENGLISH AND/OR PORTUGUESE. THE PAPERS WITH INTEREST FOR THE RESEARCHER WERE MARKED WITH #.

ESSE "BLOG" FOI IDEALIZADO COMO UMA MANEIRA DE TORNAR MEU TRABALHO FACILMENTE ACESSÍVEL. ELE CONTÉM MAIS DE 100 ESCRITOS, MUITOS DELES EM PORTUGUÊS. ALGUNS SÃO DIDÁTICOS, OUTROS NÃO. OS TRABALHOS DE INTERESSE PARA PESQUISADORES FORAM MARCADOS COM #



FROM MY CURRICULUM

I was born in Vila Seropedica, near to Rio de Janeiro, Brazil, 1954. After an intellectually boring medicine undergraduate study, I gained my MS in philosophy at the IFCS (Rio de Janeiro) and a Ph.D. in philosophy at the University of Konstanz (Germany). Since 1992, I work as a researcher and professor at the UFRN (Natal), secluded in the beautiful Northeastern of Brazil, though always in contact with the international philosophical discussion through many grants taken at the universities of Konstanz, Munich, Berkeley, Oxford, Göteborg, and Ecóle Normale Supérieure (INS). Even if dealing with contemporary analytic philosophy, I am at odds with the lack of comprehensiveness of the present mainstream philosophy. I have social dyslexia (a light degree of autism), which explains not only my lack of sociability but also my obsessive interests and intellectual independence. The books I am not ashamed to have written are "The Philosophical Inquiry" (Lanham: UPA, 2002), which develops a thesis on the nature of philosophy, Lines of Thought: Rethinking Philosophical Assumptions" (Cambridge Scholars Publishing, 2014), and "Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy" (Cambridge Scholars Publishing, 2018). The book from 2014 is a selection of essays (some of them, in my view, really relevant), while the long book from 2018 can be read as a comprehensive analysis of a cluster of concepts regarding philosophical methodology, the concept of meaning, verificationism, and truth, as investigated by philosophers from Frege to Wittgenstein. The book last published book, "How do Proper Names Really Work?" (De Gruyter 2023), has as its main goal to overthrow the old stalemate between the new and the old orthodoxy in the philosophy of language. Personally, I believe this book should be a game-changer in the field. If it will be noticed, I do not know.


SOME BOOKS (ALGUNS LIVROS):






 
















KANT: IDEALISMO TRANSCENDENTAL

ESBOÇO-DRAFT PARA TEXTO INTRODUTÓRIO  



XII

KANT: IDEALISMO TRANSCENDENTAL

 

Um professor alemão certa vez notou que na filosofia moderna existem grandes ilhas, mas somente dois continentes: Kant e Hegel. Como efeito disso, uma pessoa pode passar a vida inteira explorando um desses continentes sem chegar a conhecê-lo por completo.

   Essa parece-me uma avaliação um tanto exagerada, para não dizer facciosa. Kant e Hegel construíram sistemas extremamente ambiciosos, mas se a verdade desses sistemas faz justiça à pretensão é algo questionável. É difícil não concordar com P. F. Strawson, que no prefácio do mais influente ensaio crítico sobre a obra máxima de Kant, a Crítica da Razão Pura, escreve ter lido esse livro com um “sentimento misto de grande insight e de grande mistificação”.[1] Com efeito, o sistema arquitetônico desenvolvido por Kant e legitimado pela universidade prussiana cobra um preço em artificialidade. As peças do quebra-cabeça só parecem se encaixar pelo auxílio de uma densa nuvem de obscuridade semântica reforçada por uma apresentação rebuscadamente dogmática. Também precisamos distinguir entre profundidade e amplitude. Um filósofo como Berkeley teve insights tão profundos e originais quanto os de Kant. Mas não dedicou mais do que uma pequena parte de sua vida à reflexão filosófica. Kant dedicou toda a sua longa vida ao aprendizado e à investigação.

   A obscuridade em filosofia existe desde seus primórdios e tem suas razões de ser. Uma delas é quando o filósofo possui realmente uma variedade de insights insuficientemente desenvolvidos e não sabe como relacioná-los, embora tenha consciência de que existe algo que os relacione. Podemos encontrar esse embaralhamento polissêmico de ideias já em filósofos como Parmênides e Anaxágoras. Ou seja, a estratégia da vaguidade e abertura discursiva pode ser lícita quando se tem coisas importantes a dizer, mas não se tem como formulá-las adequadamente, o que em muitos momentos parece é certamente o caso do próprio Kant. Como notou Wittgenstein, ele também um filósofo tão ambíguo quanto genialmente sugestivo, em um conselho dado a si mesmo sobre como filosofar:

 

Não se deixe envolver por problemas parciais, mas sempre ascenda para onde houver uma concepção livre de todo o único grande problema, mesmo se essa concepção ainda não for clara.[2]

 

Se a filosofia não pode ser mais do que saber conjectural, ensaio especulativo acerca daquilo sobre o que não nos encontramos em posição de obter conhecimento pleno, como procurei mostrar no primeiro capítulo, então a observação de Wittgenstein é perfeitamente adequada.

   Há também razões mais comezinhas. Dentre todos os filósofos modernos aqui considerados, Kant foi o primeiro grande filósofo acadêmico. Hume foi um grande estilista que escrevia para leigos cultos. Precisava ser claro. Diversamente disso, Kant foi um professor, falando para alunos do alto de uma cátedra e escrevendo para colegas versados em filosofia em um ambiente acadêmico que devia ser provinciano e pernóstico.

   Há ainda uma razão comezinha para a pretensão de profundidade obtida por meio de rebuscada obscuridade na obra de um filósofo como Kant. Ele servia ao reino da Prússia, um estado autoritário e militarizado, com reis despóticos, onde a liberdade de expressão era severamente restringida – uma situação retrógrada se comparada à inglesa. Certa vez um príncipe foi visitar Kant na universidade para oferecer-lhe honrarias. Assim, a seu modo ele também servia à glória do estado prussiano, devendo em filosofia fazer o melhor para condizer com essa função ideológica.

   Um outro filósofo acadêmico que serviu ao reino da Prússia foi Hegel, que chegou a ser professor em sua capital, Berlim. Hegel foi ainda mais obscuro do que Kant e seu sistema ainda mais ambicioso. Ele colocava a filosofia acima da religião e, quando um colega seu foi expulso da universidade sob acusação de ateísmo, passou a escrever de forma ainda mais obscura. O contraponto estilístico de Hegel foi seu concorrente Shopenhauer, um filósofo que não era acadêmico e escrevia de modo tão claro quanto possível.

   A escrita macarrônica, intencionalmente vaga e obscura, mas dotada de um tom quase profético, fez escola na Alemanha: Husserl e seu pupilo rebelde, Heidegger, foram bons exemplos. Isso não significa necessariamente má filosofia. O gênio de Kant e Hegel é inegável, assim como a importância pouco reconhecida de Husserl e até mesmo a relevância de Heidegger para a antropologia filosófica. Trata-se de uma questão de medida.

   O método de fazer poeira com palavras de modo a aparentar profundidade foi importado para a França por Sartre e Merleau-Ponty, e mais tarde por acadêmicos pós-modernistas, como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida. O problema é que aquilo que era uma mensagem filosoficamente rica e profunda, mesmo que encoberta sob um denso nevoeiro retórico que a deveria tornar invulnerável, transformou-se em Deleuze em experimentação com a linguagem onde cada vez menos havia a ser dito, e em Derrida em uma mera simulação retórica dos procedimentos filosóficos, que quando trocada em miúdos, na melhor das hipóteses se demonstrava falsa e, na pior, uma algaravia estilisticamente proficiente, mas sem sentido.[3]

   Uma maneira de tentar salvar escritos como os de Deleuze e Derrida é admitir seu valor estético; eles são como as instalações em artes plásticas. Não obstante, quando consideramos o pensamento pós-moderno como arte surge um problema. É que a arte é uma ilusão que se reconhece como tal. Cada um retira da obra de arte o que acha melhor. Como vimos ao considerarmos as ideias de Collingwood,[4] a grande arte possui um potencial ampliador de nossa consciência. Mas esse distanciamento não parece ser possível na filosofia, posto que ela tem como objetivo aproximar-se da verdade sobre seus objetos. Por isso não podemos aceitar de modo igual o tratamento de um mesmo objeto por teorias filosóficas que se contradizem. Mas somos perfeitamente capazes de admirar uma pintura de Goya ou de Picasso e ao mesmo tempo uma pintura de Rafael ou de Chagall, sem sermos forçados a fazer comparações valorativas.

   Uma última observação diz respeito aos efeitos deletérios do pós-modernismo. Ele ensina as pessoas a fazerem de conta que estão empenhadas em uma investigação filosófica séria quando não fazem muito mais do que desenvolver experimentos retóricos. Como notou Noam Chomsky, isso é particularmente danoso em países subdesenvolvidos, sem uma tradição cultural forte, onde a pseudoprofundidade e o experimentalismo discursivo podem passar facilmente por grandes aquisições culturais.[5]

 

1

 

Não há muito a se dizer sobre a vida de Kant (1724-1804). Ele nasceu de uma família de seleiros, sem recursos nem instrução. Eles eram pietistas, um ramo radicalizado do luteranismo, cujos valores maiores eram “o dever, o trabalho e a oração”.[6] Aos oito anos ele entrou para uma altamente disciplinada escola pietista, que o fez mais tarde se recordar da infância como um período de escravidão, mas que lhe deixou marcas profundas que se refletiram em sua filosofia. Aos poucos ele galgou os degraus da vida acadêmica, tornando-se um aclamado professor. A monumental Crítica da Razão Pura foi sua primeira grande obra, publicada quando tinha 58 anos de idade. Só depois disso vieram as outras obras filosóficas relevantes, como a Crítica da Razão Prática, a Metafísica dos Costumes e a Crítica do Juízo.

   Kant era uma pessoa altamente disciplinada. Há muitas anedotas a seu respeito. Conta-se, por exemplo, que era inflexível em fazer seu passeio diário às 4 horas da tarde sob qualquer tempo. Uma vez, precisando muito terminar um artigo, chegou o momento do passeio. Grande conflito! Felizmente Kant teve uma ideia que lhe permitiu resolver o problema. Ele postou o tinteiro uns sete metros de distância da mesa onde escrevia, de modo que a cada minuto ele precisava caminhar até o tinteiro para encher de tinta sua pena de ganso. Esse estratagema simples lhe permitiu dar seu passeio e escrever o artigo ao mesmo tempo.

   Apesar de seu rigor e inflexibilidade prussianos, ele era uma pessoa bastante sociável. São conhecidos os almoços para os quais convidava amigos, geralmente comerciantes locais e nunca professores universitários. Goethe o admirava e quis conhecê-lo pessoalmente. Kant fez tanta dificuldade que Goethe teve um acesso de raiva e desistiu da ideia. Kant nunca saiu de sua cidade natal, nem se casou. Parece que preferiu seguir o conselho de um amigo inglês, investindo seu dinheiro em um banco, o que acabou por revelar-se a escolha certa.

 

2

 

O mais importante em Kant é sua Crítica da razão pura.[7] Como Locke e Hume, ele também quis estabelecer a natureza e os limites daquilo que pode ser conhecido, fazendo isso com o objetivo de criticar as pretensões da metafísica dogmática, por ele entendida como uma ciência que pretendia demonstrar a imortalidade da alma, o livre arbítrio e a existência de Deus. Ele queria explicar porque a metafísica dogmática nunca conseguiu apresentar mais do que argumentos de valor duvidoso.

   O projeto filosófico de Kant foi profundamente original e inovador, podendo ser entendido como um ambicioso esforço de superação, tanto do racionalismo continental quanto do empirismo britânico, mesmo que seus resultados pendessem para o racionalismo. Do racionalismo ele queria superar a metafísica dogmática, que aprendera sob a influência maior de Christian Wolff, um filósofo influenciado por Leibniz. Já do empirismo ele queria superar principalmente o ceticismo de Hume, mesmo que esse o tenha acordado de seu sono dogmático. Ainda que muito poucos acreditem que Kant tenha alcançado seu objetivo último, é certo que podemos aprender pelo conhecimento do trajeto percorrido.

   Um racionalista prototípico como Leibniz era guiado pela ideia de que, ao menos em princípio, somos capazes de obter conhecimento sobre o inteiro mundo empírico baseados apenas nos poderes da razão. Afinal, as suas mônadas (e aqui falamos de nossas mônadas-almas), além de serem eternas, já conhecem o universo inteiro a priori, mesmo que de modo inconsciente. Por outro lado, um empirista prototípico como Locke acreditava que todo nosso conhecimento é todo proveniente da experiência empírica, incluindo mesmo os princípios lógicos.

   O primeiro passo dado por Kant para superar a oposição entre racionalismo e empirismo foi o de revisar a distinção empirista entre associações de ideias e questões de fato (Hume), correspondente à distinção racionalista entre as verdades da razão e as verdades de fato (Leibniz). Para Kant o que existe não é uma dicotomia, mas uma tricotomia entre (i) juízos analíticos (a priori), (ii) juízos sintéticos a posteriori e (iii) juízos sintéticos a priori. Vejamos como ele define cada um deles.[8]

   Juízos analíticos estão no lugar das relações de ideia em Hume. Mas Kant os define à maneira de Leibniz: eles são aqueles nos quais o conceito do predicado está contido no conceito do sujeito. Eles são a priori, posto que não se originam da experiência, mesmo que dependam dela. O exemplo dado por Kant é: “Todos os corpos são extensos”. Simplesmente encontra-se na definição de um corpo que ele deve ser extenso. Eles também se mostram a priori porque são necessários e sua negação conduz a uma contradição: “Nem todos os corpos são extensos” é um enunciado necessariamente falso. Os juízos analíticos, por serem a priori, são para Kant necessários e estritamente universais, mas sob um preço muito alto, posto que são incapazes de ampliar nosso conhecimento. Eles nada nos dizem sobre o mundo, dizendo respeito apenas a relações lógico-conceituais. Exemplos são “Triângulos tem três lados, “Vermelho é uma cor”, “Solteiros são não-casados”.

   Os juízos sintéticos são aqueles nos quais o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito. Por essa razão a descoberta de sua verdade parece sempre demandar experiência, tornando-os a posteriori. O exemplo de Kant é: “Todos os corpos são pesados”. Sabemos disso por experiência, de modo que negação não é contraditória. Não é impossível que nem todos os corpos sejam pesados. Na verdade, corpos físicos que se encontram fora da ação gravitacional não possuem peso, apesar de possuírem massa. Os juízos sintéticos a posteriori são ampliativos. Eles nos dizem algo sobre o mundo e constituem a maior parte daquilo que diariamente ajuizamos. Exemplos: “O céu é azul”, “Londres é a capital do Reino Unido”, “Sapos não comem insetos que não se movem”...

   Contudo, para Kant há uma espécie de juízo em que o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito, mas que mesmo assim é necessário e universal. Esse seria para ele o caso das leis científicas da física newtoniana, como a que nos informa que a força gravitacional entre dois corpos é diretamente proporcional à multiplicação de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles. Outro caso é o das verdades da matemática e da geometria enquanto aplicadas ao mundo externo. Esses enunciados dizem algo sobre como o mundo se comporta. Eles não são analíticos, pois são para Kant ampliadores do conhecimento. Seriam eles sintéticos a posteriori? Um filósofo como Hume não teria dificuldades em considerar as leis da física como verdades de fato, ou seja, como enunciados sintéticos a posteriori. E ao considerar os enunciados da matemática como relações de ideias (i.e., enunciados analíticos) ele não tinha sequer em mente o problema da aplicabilidade dos mesmos ao mundo externo.  Um empirista posterior, J. S. Mill, chegou mesmo a considerar os princípios da geometria e mesmo os da matemática como juízos empíricos (sintéticos e a posteriori), dependentes da experiência e, portanto, ao menos em princípio passíveis de serem falseados. Não obstante, para Kant não poderia ser assim. Sob sua perspectiva os princípios da física, das matemáticas e da geometria de seu tempo deveriam possuir o status de verdades absolutas: juízos necessários e estritamente universais. Euclides na geometria e Newton na física haviam decifrado o alfabeto pelo qual Deus escrevera o livro da natureza.

   Diante de tal problema Kant decidiu por uma terceira via, tão ousada que só um filósofo seria capaz de propor. Ele concluiu que para bem fundamentar as ciências seria necessário recorrer a uma nova espécie de juízo: o juízo sintético a priori. Em tal juízo o predicado não pertence ao sujeito, mesmo assim sendo necessária e universalmente ligado a ele. Considere um juízo da aritmética como “7 + 5 = 12”. Segundo Kant trata-se de um juízo sintético a priori, pois o conceito do número doze não está contido no conceito da soma de 7 e de 5.[9] Isso parece se tornar mais aceitável quando consideramos somas de números maiores como “389 + 973 = 1362”. Aqui decididamente não vemos o conceito do predicado “...é igual a 1362” no conceito da soma em questão. Por isso esses juízos seriam sintéticos. Mas eles também são a priori por serem necessários e estritamente universais. O mesmo se poderia dizer de um enunciado da geometria euclidiana como “A reta é a distância mais curta entre dois pontos”.[10] Para Kant podemos pensar a linha reta na independência de ser ela a distância mais curta entre dois pontos (Euclides definiu a reta como “uma linha traçada uniformemente com os pontos sobre si”). Assim, esse enunciado é sintético, mas a priori, posto que (para ele) é necessário e universal. O mesmo acontece com os conceitos da física newtoniana, que na época de Kant era o paradigma da ciência empírica. Um princípio como o da permanência da matéria era para Kant um juízo sintético a priori. Ele seria sintético porque o conceito de permanência não está contido no conceito de corpo material; ele seria a priori porque deveria valer necessariamente para todos os constituintes materiais do universo. Kant acreditava na verdade absoluta acerca do mundo empírico, um conceito hoje rejeitado, considerando que a grande maioria dos filósofos da ciência contemporâneos é falibilista.

 

3

 

O segundo passo consiste em justificar a existência dos juízos sintéticos a priori. Trata-se do que Kant chamou de “a grande luz” que o conduziu ao pensamento crítico, por ele mesmo chamado de “revolução copernicana”.[11] Assim como após Copérnico, ao invés de o sol circular em torno da terra, a terra passa a circular em torno do sol, após Kant, ao invés de os objetos circularem em torno do sujeito do conhecimento é o sujeito do conhecimento que passa a circular em torno dos objetos. Melhor dizendo: o sujeito do conhecimento passa a ter um papel ativo na produção do conhecimento. Mais do que isso: o mundo deve obedecer às leis impostas pelo sujeito do conhecimento de modo a poder ser conhecido naquilo que lhe é necessário e universal. Nós somos, acreditava ele, os legisladores do universo! Somos nós que lhe damos forma e estrutura. Eis porque os juízos sintéticos a priori são necessários e estritamente universais. Eles são necessariamente aplicáveis porque o mundo, enquanto algo capaz de ser conhecido, deve seguir os princípios impostos pela nossa matemática, pela nossa geometria e pela nossa ciência empírica, as quais eram para ele necessárias e universais, ou seja, não só constituídas por juízos sintéticos, mas também a priori.

   A maior preocupação de Kant não era, porém, a fundamentação das matemáticas e das ciências empíricas. Ele quis criticar a metafísica especulativa, demonstrando que a razão pura não é capaz de resolver questões metafísicas como as da existência de Deus, da eternidade da alma e do livre arbítrio.

   Fundamental para a revolução copernicana é a subjetivização do mundo da experiência proposta por Kant através da distinção entre mundo noumênico e mundo fenomênico. O mundo noumênico é o mundo como ele é em si mesmo, na independência da experiência. Objetivamente ele é constituído pelo que Kant chamou de coisa em si (Ding an sich), enquanto subjetivamente ele é constituído por um Eu noumênico (que os metafísicos chamam de alma), um X distinto do eu empírico considerado por Hume. Nada podemos saber sobre esses dois polos do impensável. Nada podemos saber sobre a coisa em si mesma, sobre o X da subjetividade transcendental ou sobre o mundo noumênico que os encerra. Tudo o que podemos saber é sobre o mundo tal como ele aparece a nós, o mundo fenomênico das aparências (a palavra grega ‘pheinomenon’ significa aparência). Essa distinção é fundamental para a revolução copernicana. Se somos nós que legislamos sobre o objeto do conhecimento, então esse objeto precisa ser de algum modo “subjetivizado”. É pelo fato de que o objeto empírico do conhecimento pertence ao mundo tal como ele nos aparece e não tal como ele é em si mesmo que a ele pode ser aplicada a revolução copernicana. O mundo fenomênico passa a ser, em sua forma e estrutura, dependente do sujeito da experiência.

   Do ponto de vista epistêmico, o que Kant fez foi ancorar o mundo humiano das ideias soltas em um mundo noumênico incognoscível. Locke tem sido geralmente considerado um realista indireto. Berkeley orgulhava-se de seu idealismo, enquanto Hume foi um idealista envergonhado. Kant foi o que poderíamos chamar de um realista indireto por postulação. O mundo como ele é em si mesmo, o mundo noumênico, é um algo sobre o qual a razão humana nada é capaz de dizer. Trata-se de uma forma minimalista de realismo indireto.

 

4

 

Sobre a introdução acima resumida há um número de objeções a serem feitas. A primeira, hoje bastante óbvia, diz respeito à definição de juízo analítico. Na época de Kant a lógica clássica ainda não tinha alcançado o extraordinário desenvolvimento resultante da descoberta do cálculo dos predicados por Gottlob Frege. Assim, Kant define esse juízo como se todos os enunciados relativos à nossa gramática conceitual fossem (ou pudessem ser transformados em) enunciados do tipo sujeito-predicado. Mas enunciados relacionais em geral não são redutíveis a enunciados predicativos. Considere o enunciado: “Se João é irmão de Maria então ambos são filhos dos mesmos pais”, que tem a forma “p q”. Ele é certamente analítico, pois não depende da experiência e não pode ser negado sem contradição, mas nós não temos como reduzi-lo a um enunciado do tipo sujeito-predicado. A solução mais geralmente aceita hoje é chamar de analítico o enunciado cuja verdade (ou valor-verdade) depende somente dos significados de suas expressões constitutivas e da maneira como eles são por elas interligados. Essa correção não representa grande problema para o que Kant pretendeu demonstrar.

   Também é fácil objetar contra seu exemplo para mostrar que os juízos da aritmética são sintéticos e a priori valendo-se da lógica fregeana. Considere, por exemplo, o enunciado “7 + 5 = 12”, considerado por Kant um juízo sintético a priori. Logicamente analisado, ele não é um enunciado do tipo sujeito-predicado. Ele é um enunciado com o predicado relacional “...é o mesmo que...”, podendo ser exposto como “7 + 5 é o mesmo que 12”. Nesse caso não cabe mais a questão de se saber se o 12 não estaria contido em “7 + 5”, pois tanto 7 + 5 quanto o 12 possuem a mesma referência, qual seja, o número 12. Assim interpretado, esse enunciado é analítico mesmo que não tenhamos em mente o resultado da soma de 7 com 5 ao considerarmos 7 + 5. A analiticidade fica mais clara quando consideramos uma soma como “2 + 1 = 3”, em que parecemos ver o 3 no primeiro lado da identidade. Afinal, o enunciado 2 + 1 = 3 poderia ser analisado ao modo de Leibniz como (1 + 1) + 1 = (1 + 1 + 1), admitindo que 2 (Df.) = 1 + 1 e que 3 (Df.) = 2 + 1.

   Considere agora um enunciado como “A menor distância entre dois pontos é uma linha reta (na geometria euclidiana)”. Nada nos impede de definirmos uma semi-reta, no plano euclidiano, como a linha mais curta entre dois pontos. Nesse caso o predicado nada mais é do que um desdobramento do sujeito e o enunciado acima poderá ser considerado analítico. Outros enunciados da geometria euclidiana, como “A soma dos ângulos internos de um triângulo euclidiano é 1800” exigem demonstração, mas a demonstração parte de axiomas que não podem ser negados, disso resultando que ela mesma não pode ser negada.

   Há aqui dois pontos bem conhecidos que precisam ser lembrados. O primeiro é que os enunciados da geometria podem ser tanto analíticos e a priori quanto sintéticos a posteriori, dependendo de como os consideramos. Enquanto os consideramos com fazendo parte da geometria euclideana tomada em abstrato eles são necessariamente verdadeiros, pois decorrem logicamente de axiomas e postulados aceitos. Eles são analíticos e a priori. Mas quando consideramos esses mesmos enunciados sob a perspectiva da geometria em sua aplicação ao mundo real, eles passam a depender de medições empíricas para que a sua verdade seja atestada, tornando-se sintéticos a posteriori.

   A geometria euclidiana era a única existente nos tempos de Kant, que a considerou absolutamente verdadeira. Mas apenas cerca de trinta anos após sua morte Lobachewsky desenvolveu uma geometria hiperbólica, que rejeitava o quinto postulado de Euclides e na qual a soma dos ângulos de um triângulo é menor do que 1800. Pouco mais tarde Riemann desenvolveu uma geometria elíptica, na qual o quinto postulado também é rejeitado e os ângulos de um triângulo resultam em mais do que 1800. O resultado disso é que não existe apenas uma única geometria, como Kant pensava.

   De um ponto de vista interno a elas, qualquer uma dessas geometrias é verdadeira e seus enunciados podem ser considerados analíticos ou derivações analíticas de seus axiomas. Eles são relações de ideias no sentido de Hume. Seus enunciados serão necessariamente verdadeiros no sentido de que decorrem de axiomas aceitos, de modo que suas negações serão contraditórias. Não há razões intrínsecas para escolhermos um sistema geométrico em detrimento de outro.

   É quanto à aplicação da geometria euclideana ao mundo externo que a revolução copernicana de Kant sofreu um primeiro grande fracasso. Em 1915 a teoria da relatividade generalizada demonstrou que onde há corpos massivos e, portanto, gravidade, o espaço-tempo se torna encurvado e só pode ser calculado pela aplicação da geometria riemanniana. Ou seja, se traçarmos um triângulo entre a terra, vênus e marte, a soma dos seus ângulos internos será superior a 1800. Precisamos aqui da distinção entre geometria pura e aplicada. A validade da geometria aplicada depende da experiência. A geometria euclidiana apenas parece necessariamente aplicável ao espaço físico, uma vez que ela nos basta para medirmos o espaço ao nosso redor. A evolução natural nos dotou da capacidade de aplicarmos naturalmente essa geometria em nossas ações e de a compreendermos com maior facilidade do que as geometrias alternativas. Mas a física moderna demonstrou que quando consideramos grandes distâncias entre corpos massivos a aplicação da geometria elíptica nos traz resultados mais precisos (a geometria euclideana voltará a valer em um espaço no qual não há gravidade). Assim, deixa de haver uma razão kantiana para que a geometria euclidiana seja considerada sintética a priori. Como geometria pura ela pode ser considerada analítica, ou seja, um sistema axiomático no qual enunciados se seguem dos axiomas formando um sistema. Mas como geometria aplicada ela será sintética e a posteriori se considerada do ponto de vista de sua aplicação ao mundo físico externo, ou seja, como parte de nossa descrição física do mundo. O sintético a priori demonstra-se aqui resultado de uma confusão do caráter analítico e a priori da geometria axiomática com o caráter sintético e a posteriori da geometria aplicada ao mundo físico.

   Um destino semelhante teve a física newtoniana, que Kant também considerava feita de verdades absolutas. A relatividade generalizada nos mostrou que a lei da gravidade de Newton é apenas uma aproximação. O que inteiramente se aplica são leis muito mais complexas, resultantes da teoria da relatividade geral, que possuem maior poder explicativo em um mesmo domínio de aplicação. Não sabemos sequer se essas últimas leis são absolutas, ou se mesmo elas não são apenas uma aproximação. Como notou Karl Popper, mesmo que alcançássemos a verdade absoluta não poderíamos saber se realmente a alcançamos. Isso vale para a física, mas talvez até mesmo para todo nosso conhecimento. Não é logicamente impossível que um dia acordemos em um mundo encantado, descobrindo que as estrelas não passam de pirilampos colocados pelos deuses no céu da noite para enfeitar a abóboda celeste, nossa presente ideia do cosmo não passando de uma fabulosa ilusão.

   A conclusão a que chegamos é que mesmo as leis da física não são constituídas de juízos sintéticos a priori. Elas são juízos sintéticos a posteriori, podendo sempre em principio ser demonstradas falsas.

    A suposta revolução copernicana de Kant chega, portanto, a um triste fim e temos boas razões para descartá-la antes mesmo de considerar seu sistema. Identificamos os princípios da geometria euclideana devido a capacidades que foram ganhas como efeito da evolução natural, mas somos capazes de alterar esses princípios, como aconteceu com o surgimento de novas geometrias. Aqui podemos notar o que parece ser a diferença entre o entendimento dos problemas por Hume e por Kant. Hume entendeu as matemáticas (aritmética e geometria) como constituídas de enunciados que são relações de ideias (ou seja, analíticos) porque ele os pensava em termos de aritmética e geometria abstratas. Nesse sentido Hume estava certo. E se quisesse ele poderia ter considerado a geometria aplicada como resultado de inferências indutivas meramente prováveis, ou seja, como dependentes de juízos sintéticos a posteriori.

   Kant, por sua vez, tinha preocupação com a aplicação da aritmética e da geometria, acreditando que as verdades da geometria euclideana fossem absolutas, já que elas eram conhecidas há dois mil anos. Quanto às leis da física newtoniana, por exemplo, não parecia haver na época razão alguma para não considerá-las verdades absolutas. Assim, a questão que a Kant se apresentava era: como justificar a verdade absoluta dos juízos da matemática e da geometria? A única resposta que encontrou foi a de que seus juízos são sintéticos a priori. Eles são necessários e universais (a priori), ao mesmo tempo que são capazes de nos dizer algo sobre o mundo (sintéticos). E só através da revolução copernicana seríamos capazes de dar conta disso.

   A conclusão a que chegamos é que a revolução copernicana, tal como Kant a concebeu, falhou desde seu início. Ainda pode ser aceito que a estrutura do mundo, tal como somos capazes de conhecê-lo, possa depender dos filtros estruturais inerentes ao nosso aparato cognitivo, cabendo a questão de saber em que medida Kant foi bem sucedido em descobri-los.

 

5

 

Kant quis na Crítica investigar as condições necessárias da experiência, ou seja, aquilo por meio do que nós damos à experiência sua forma e estrutura, de maneira a possibilitar sua revolução copernicana. Assim, ele dividiu seu livro em três partes: a primeira ele chamou de estética transcendental, onde examinou as formas da intuição sensível, que para ele são o espaço e o tempo. A segunda parte é a analítica transcendental, onde ele examinou os juízos do entendimento e seus conceitos fundamentais. A última parte é a dialética transcendental, onde ele examinou os encadeamentos de juízos em raciocínios e criticou seu mau uso pela metafísica dogmática.

   É importante notar o plausível pressuposto kantiano de que a experiência requer o trabalho conjunto da intuição sensível e do conceito. Ou seja: para termos consciência de nossas sensações, não basta apenas tê-las; é preciso conceptualizá-las através do entendimento. Só sei que vejo uma mancha vermelha porque apliquei os conceitos de mancha e de vermelho ao material sensível. Sem isso não há como se reconhecer uma mancha vermelha. Logo chegaremos a esse ponto.

 

6

 

Após a introdução da Crítica, Kant passou a sua estética transcendental. A palavra ‘estética’ vem do grego ‘aísthesis’ que significa sensação ou percepção sensível. Esse sentido era comum na época de Kant, tendo mudado para o estudo do belo sob influência maior de Baumgarten. Já a palavra ‘transcendental’ diz respeito às condições supremas sob as quais deve ser submetido qualquer objeto do conhecimento.

   Para Kant nós não conhecemos os objetos como eles são em si mesmos, ou seja, como o que ele decidiu chamar de noumena. Nós os conhecemos pelas modificações que eles produzem na intuição sensível, a dizer, no domínio das aparências (Erscheinungen) ou fenômenos (phainómena). Essas modificações possuem matéria e forma. A matéria é aquilo que é impresso nos sentidos pelo que lhes é externo. Ela é o material sensível. É tentador dizer que se trata de sensações como as das cores, da dureza, do calor e do frio, do gosto ou do som. Mas isso seria enganoso, pois para identificarmos sensações precisaremos aplicar conceitos, os quais já pertencem ao domínio do entendimento. Tudo o que se pode dizer é que a matéria é aquilo que é impresso nos sentidos pela coisa-em-si. O material sensível vem do objeto, o que o torna a posteriori. Já a forma é aquilo que o sujeito imprime ao material sensível, as sensações, de maneira a organizá-las. Quando consideramos a forma da intuição sensível, abstraindo dela o material sensível, temos o que Kant chama de a forma da intuição pura, que é constituída pelo espaço e pelo tempo. Espaço e tempo vêm do sujeito sendo, portanto, a priori, ou seja, intuições puras necessárias e universais.

   O espaço é para Kant único e infinito, assim como o tempo, o que significa que ele aceita a concepção newtoniana do espaço e do tempo.[12] Espaço e tempo são intuições (Anschauungen) não conceituais, subjacentes aos objetos dos quais temos conceitos. O espaço é uma intuição subjacente aos objetos externos porque para, segundo Kant, podemos imaginar que eles desapareçam, mesmo assim permanecendo o espaço, o mesmo se dando com o tempo. O espaço é a forma da intuição externa, de modo que todas as sensações nos parecem extensas. Como as formas geométricas se dão no espaço isso justifica o caráter sintético a priori da geometria. Quanto ao tempo, ele é a forma da intuição interna, de modo que todas as sensações se dão no tempo. Como ao fazermos cálculos e contarmos séries numéricas precisamos de tempo, isso justifica para ele o caráter sintético a priori da aritmética e da matemática em geral. Kant rejeitou com isso a concepção leibniziana de espaço e o tempo, segundo a qual eles existem na independência de nossa intuição sensível, como entidades relacionais objetivas e inerentes às coisas e suas qualidades.

 

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Em sua História da Filosofia Ocidental Bertrand Russell fez algumas objeções aos argumentos de Kant em defesa da transcendentalidade do espaço e do tempo. Ele observou que não temos nenhuma ideia do que sejam as intuições do espaço e do tempo infinitos ou subjacentes aos objetos: não somos capazes, após retirarmos todos (realmente todos) os objetos, de conceber um espaço vazio, como Kant pretendeu. Kant também deixa inexplicada a razão de organizarmos as intuições do espaço de uma maneira e não de outra. Como Russell observa:

 

O que me induz a arranjar os objetos da percepção como eu faço e não de outra maneira? Por que, por exemplo, eu sempre vejo as pessoas com os olhos sobre as suas bocas, e não debaixo delas? De acordo com Kant (...) nada nas coisas corresponde aos arranjos que existem em nossa percepção.[13]

 

Note-se que isso vale para o material sensível conceptualizado pelo entendimento. Algo semelhante podemos dizer acerca do tempo. Vemos o raio e depois de alguns segundos ouvimos o trovão; mas sabemos que o raio e o trovão ocorrem de modo praticamente simultâneo. Como explicar essa simultaneidade se ordenamos as intuições temporais internamente? Se considerarmos os dois exemplos parece que o acontecer, a organização espacial e a ordem temporal dos fenômenos, dependem e não dependem do sujeito. Dependem então da coisa em si? Mas se dependerem dela então ela já se torna espaço-temporal.

   Considerando, com pouca alteração, um outro exemplo de Russell,[14] imagine que você ouve uma pessoa fazendo uma pergunta; a fala dela é anterior à sua audição, da qual se segue a sua réplica, após a qual vem o ouvir da pessoa no mundo objetivo da física. Essa ordem temporal não é determinada por você, o que parece demonstrar a objetividade e independência do tempo físico. Esse exemplo também ilustra a dificuldade de se trazer o mundo público, no qual as pessoas interagem umas com as outras, para dentro do espaço e tempo supostamente subjetivos.[15]

   Apesar de todo o maquinário conceitual construído por Kant, a estética transcendental pouco tem de convincente. Como pode o sujeito da experiência determinar o espaço e o tempo físicos, se essas entidades claramente não dependem dele? A física moderna não teria descoberto que onde há corpos materiais massivos o espaço físico segue uma geometria elíptica se o espaço fosse imposto pelo sujeito como a forma da intuição sensível. Há certamente um espaço dependente da mente, constituído por imagens mentais dadas na percepção ou produzidas pela imaginação, assim como uma consciência psicológica do passar do tempo. Nesse caso, tanto o tempo quanto o espaço poderiam ser respectivamente tratados como “formas do sentido externo e interno”. Mas esses não são nem o espaço medido por fitas métricas, nem o tempo contado pelos relógios, mas entidades psicológicas secundárias, que dependem dos espaços e tempos físicos para se tornarem reflexos nem sempre confiáveis dos últimos e mesmo para se tornarem em algum sentido mensuráveis. Para Russell Kant confundiu o espaço e o tempo psicológicos secundários com o espaço e o tempo reais dos quais eles dependem.

 

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Passemos agora à segunda parte da Crítica, a analítica transcendental. Assim como a estética transcendental tinha a ver com as intuições sensíveis, a analítica transcendental tem a ver com conceitos do entendimento. Como já fiz notar, para Kant intuições e conceitos são complementares, pois intuições só se tornam cognitivamente acessíveis quando conceptualizáveis e conceitos não ancorados em intuições nada nos dizem. Como ele com razão escreve:

 

As intuições sem os conceitos e os conceitos sem as intuições não produzem conhecimento. Os conceitos sem as intuições são vazios e as intuições sem os conceitos são cegas.[16]

 

O objetivo original da analítica transcendental é, através da revolução copernicana, provar a verdade necessária e universal das leis da natureza, como as grandes descobertas feitas pela física de Newton, que Kant ainda podia considerar verdades absolutas. Para Kant isso só é possível se o intelecto puder impor suas leis ao mundo tal como ele nos aparece (como fenômeno) e não tal como ele é em si mesmo (como noumena). Assim, o intelecto precisa impor suas leis à experiência. Contudo, o caminho que para Kant conduz a isso é mais encarpado do que o leitor possa imaginar.

   A atividade do entendimento não é mais a de intuir, mas a de formar juízos sobre o que é dado à sensibilidade. O trabalho dos juízos é o de unificar a experiência formando sínteses a partir das intuições sensíveis.  Os diversos modos gerais pelos quais o entendimento sintetiza a experiência são determinados por “superconceitos” que são as categorias kantianas, com as quais ele pretendeu substituir as categorias de Aristóteles. Uma diferença é que enquanto para Aristóteles as categorias pertenciam ao domínio do ser, ou seja, da realidade objetiva (legis entis), as categorias de Kant pertencem ao domínio do sujeito (legis mentis), dado que é ele quem às impõe ao mundo da aparência fenomênica. Outra diferença é que enquanto em Aristóteles as categorias foram estabelecidas de maneira meramente rapsódica, Kant às fez derivar de uma modificada tábua dos juízos herdada da lógica clássica seguindo o que chamou de uma dedução metafísica das categorias.

   As categorias ocupam na analítica o mesmo lugar que o espaço e o tempo na estética. Na estética tratava-se das formas a priori de toda a sensibilidade. Na analítica trata-se das leis a priori que estruturam todo o pensamento. As coisas, para serem intuídas, precisavam ser submetidas às formas da intuição sensível. Mas para serem pensadas precisam, além disso, ser submetidas às leis do pensamento. No que se segue apresento a tábua dos juízos tal como ela foi proposta por Kant, seguida das categorias que neles se encontram incorporadas:

 

ESQUEMAS:            JUÍZOS:                   CATEGORIAS:

                                   Singulares                 totalidade

Quantidade                particulares                pluralidade

                                  Universais                  unidade

 

                                  afirmativos                 realidade

Qualidade                  negativos                    negação

                                  Infinitos                      limitação

 

                                  categóricos                 substância/acidente

Relação                     hipotéticos                  causa/efeito

                                  disjuntivos                  ação recíproca

 

                                  problemáticos             possibilidade/impossibilidade

modalidade               assertóricos                 existência/inexistência

                                  apodíticos                   necessidade/contingência

 

As categorias são conceitos gerais que se encontram implícitos em tudo o que pensamos. A ideia de retirar conceitos fundamentais das formas dos juízos sempre me pareceu um importante insight, ainda que seu desenvolvimento seja questionável em detalhes. Um exemplo pode ajudar a mostrar como a coisa funciona. Digamos que eu faça o seguinte juízo: “Esta rosa é vermelha”. Trata-se de um juízo singular, afirmativo, categórico e assertórico. De modo correspondente, as categorias aplicadas são respectivamente as de totalidade (trata-se de um todo), realidade (o referente é real), substância (a rosa), acidente (é vermelha), e existência (a rosa existe). Se o juízo for “Se um metal é aquecido então ele se expande”, as categorias aplicadas são respectivamente as de unidade, causalidade, realidade e existência. Há arbitrariedades evidentes, como o fato de que os juízos singulares e universais poderiam conter inversamente as categorias de unidade e pluralidade. Além disso, a simetria das tríades é uma invenção questionável...

   Não satisfeito com a dedução metafísica (quid factum) da tábua das categorias, Kant decidiu apresentar uma dedução transcendental (quid juris) justificadora de sua aplicação universal. Essa dedução é a parte mais indevassável da Crítica. Há diferentes versões, mas vou tentar resumir o mais essencial em poucas palavras. A dedução pode começar com a observação de que nosso entendimento opera através de sínteses ou combinações do múltiplo dado na intuição. Isso é bem exemplificado nas sínteses que dependem da apreensão do múltiplo seguida de sua reprodução ou retenção na imaginação e de sua recognição como sendo o mesmo. As sínteses inevitavelmente envolvem a aplicação das categorias. Elas pressupõem, obviamente, o objeto do conhecimento e, por consequência, um sujeito do conhecimento. Além disso, nosso conhecimento não é constituído de elementos separados entre si, mas forma um todo unitário. É preciso, pois, que exista algo capaz de unir nossos juízos sobre o mundo. Ora, esse algo só pode ser o Sujeito do conhecimento, dado que é ele o detentor das leis e formas que devem impor ordem ao mundo fenomênico. O Sujeito do conhecimento, que tem como contraparte o objeto da experiência precisa, pois, existir como condição necessária para garantir a unidade da experiência. Ora, para isso é necessário que todas as experiências possam ser acompanhadas por um mesmo sujeito, um mesmo “eu penso”. Como ele escreve:

 

O eu penso deve poder acompanhar todas as minhas representações (...) uma vez que as múltiplas representações presentes em determinada intuição não seriam minhas se não pertencessem todas à minha autoconsciência. De outro modo o meu eu seria tão vário e colorido quanto são as representações que formo.[17]

 

Esse eu  apreendido no “eu penso” não pode, porém, ser um eu empírico humiano, pois esse último é um eu multicor, constituído por feixes de intuições que se sucedem umas às outras, sendo diverso a cada nova experiência. O eu pensante tem de ser um único. Ele está para Kant sempre acima e além da experiência, uma vez nada do que é dado à experiência pode lhe fazer parte, tornando-se no melhor dos casos parte do eu empírico. Esse Eu deve ser o que Kant chama de unidade transcendental da apercepção, um X noumênico cuja assunção é minimamente uma necessidade lógica para que possamos ter a consciência de nossas sínteses como pertencentes a um único sujeito da experiência. Esse X noumênico é também uma atividade aperceptiva, sintetizadora do múltiplo da intuição sensível.[18] A unidade sintética da apercepção dele decorrente é necessária à aplicação das categorias porque os juízos só são plenamente reconhecidos se forem integrados na unidade de uma consciência. Finalmente, como o eu pensante realiza as sínteses do entendimento só através de juízos e os juízos contém as categorias, todo nosso entendimento demanda a aplicação das categorias.

 

 

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Quero agora expor uma maneira de reconstruir o insight de Kant que lhe retira a postulação indébita de um Eu transcendental noumênico, colocando esse Eu de par em par com um eu empírico Humiano. Como já vimos, Hume havia admitido que o eu empírico também poderia ser considerado como uma comunidade que com o tempo se altera, recebendo e perdendo membros, mas que ainda assim continua sendo identificável como sendo a mesma. Considerando essa forma menos fugaz de eu empírico, ele seria constituído de uma multiplicidade de características capazes de serem tornadas conscientes, as quais são caracterizadores de um eu como sujeito individual. Certamente isso existe. Eu sou capaz de me identificar como um sujeito que possui tais e tais características emocionais, tais e tais capacidades mentais, disposições e habilidades, memórias, coisas que parecem mais fundamentais a mim mesmo e que constituem meu eu como auto-imagem. Pessoas que me conhecem são capazes disso. Esse eu empírico como auto-imagem, esse eu-comunitário, é muito diverso do eu empírico fugaz e variável considerado por Kant, que é o mesmo que o “feixe de percepções que se sucedem” notado por Hume. Ele é uma comunidade de propriedades geralmente disposicionais que permanece a mesma diante das variadas representações que lhe são dadas.

   A observação desse ponto conduz ao seguinte argumento: sempre que me proponho a refletir sobre minhas propriedades disposicionais permanentes, eu mesmo sou distinto dessas características que observo ou das quais me recordo. E quando tento me aprofundar mais em mim mesmo, este eu que está pensando se encontra sempre acima e além dos segmentos do eu empírico presentemente à minha disposição. Ora, esse eu é o mesmo que acompanha todas as minhas representações e que nunca pode ser como um todo pensado. Mas não se trata aqui do eu transcendental kantiano, pertencente ao mundo noumênico, mas do eu-comunitário complexo e disposicional que constitui minha auto-imagem!

   Em outras palavras: há uma maneira diferente de se explicar a questão do mesmo eu capaz de acompanhar todas as minhas representações, a qual elimina a necessidade do recurso a um eu transcendental. Suponhamos, para simplificar, que os atributos que constituem meu eu empírico comunitário possam ser agrupadas no seguinte conjunto: {C1, C2, C3... Cn}. Ora, é um fato inegável que quando sou capaz de obter acesso empírico introspectivo a mim mesmo, esse acesso é sempre parcial. Sou capaz, vez que outra, de ter acesso a características recorrentes de minha pessoa como, digamos, C1, ou C8, mas não do todo. Mas é preciso notar que esse eu empírico permanente provedor de minha auto-imagem e constituído por {C1, C2, C3...Cn} nunca é capaz de ter acesso completo a ele mesmo como {C1, C2, C3... Cn}, supostamente porque para tal ele teria de se duplicar sobre si mesmo. (A situação aqui lembra a do barão de Münchhausen, que para ultrapassar um muro alto pôs seus pês sobre os seus ombros e, subindo neles, foi capaz de passar para o outro lado.) Seja como for, é um fato que não somos, por razões estruturais, capazes de ter uma experiência completa de nós mesmos. Tudo o que podemos produzir são construtos, auto-imagens, quadros mnêmico de atributos auto-identificadores resultantes de introspecções passadas, combinado com informações provenientes da interação com outras pessoas, etc. Esse quadro mnêmico pode inclusive ser distorcido e muito frequentemente ele o é, pois é quase inevitável produzirmos concepções idealizadas de nós mesmos.

   Mas que dizer do “eu penso” que acompanha todas as minhas representações, ou seja, da consciência que sempre tenho de mim mesmo como o sujeito da experiência? Essa consciência não é de uma experiência intuitiva, pois esse não é {C1, C2, C3... Cn} nem sequer de partes disso. De fato, quando penso que sou sujeito de minhas experiências nada de específico se passa em minha mente. A resposta que me parece plausível é que, uma vez que já tive a consciência introspectiva de meu eu comunitário {C1, C2, C3...Cn}, eu tenho a consciência de que posso atualizar tais representações de mim, mesmo de modo que a consciência atual que tenho de mim mesmo quando penso se resume a isso. A consciência imediata de um eu como eu pensante nada mais é do que a consciência de um “algo” do qual já tive consciência, minha auto-imagem como C1, C2, etc. que não se atualiza. Nada demais nisso, pois temos frequentemente a consciência de memórias que não precisamos ou mesmo que não podemos atualizar. Uma consequência desse modo de pensar é que um sujeito incapaz de introspecção, como é o caso de muitos animais, não será capaz de ter a consciência de si demandada por Kant. Para que eu me pense presentemente como um eu pensante é preciso que antes já tenha tido alguma experiência introspectiva de características reiteradas de mim mesmo.

   Para concluir, o eu empírico pode ser entendido de três maneiras:

 

(i)             como o eu humiano fugaz entendido como “o feixe de percepções que se sucedem” (Hume);

(ii)           como o eu em sua constituição como auto-imagem, como um conjunto mais ou menos organizado de características pelas quais uma pessoa se auto-identifica;

(iii)         como a consciência que uma pessoa tem de si mesma como sujeito que possui (ii) sem que para isso eu precise atualizar características de (ii) na memória. Esse sentido (iii) é o que Kant erroneamente toma como sendo a unidade transcendental da consciência.

 

Com isso temos explicada a suposta diferença entre o eu empírico e o Eu transcendental – o X que acompanha todos os meus pensamentos. O eu empírico fugaz considerado por Kant é (i), enquanto o que ele pretende que seja o Eu do “eu penso”, responsável pela unidade transcendental da autoconsciência, não é mais do que (iii), ou seja, a simples consciência que a pessoa possui de ter uma auto-imagem, por limitada que seja, em oposição aos objetos de sua experiência. Com isso o suposto eu noumênico pretendido por Kant pode ele mesmo passar à categoria de ilusão. Tudo se resume a propriedades internas que geralmente não são, mas que podem ser atualizadas.

 

 

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Na parte seguinte da Crítica, intitulada analogias da experiência, Kant tenta estabelecer os princípios reguladores que nos levam à descoberta das conexões empíricas da física newtoniana. Contudo, aqui seus argumentos são outra vez em boa parte contestáveis. Por exemplo, ele tenta demonstrar seu princípio a priori de que a causalidade é condição necessária para a experiência pelo fato de que a ordem subjetiva das percepções é reversível enquanto a ordem objetiva é irreversível. Disso ele conclui que porque a ordem das nossas percepções é como tal necessária, as mudanças apropriadas no objeto precisam ser causalmente determinadas. Mas a constatação de que a ordem irreversível das percepções é necessária é falsa. Afinal, nada garante a sua irreversibilidade, tanto quanto para Hume nada garante a causalidade. As ocorrências que se dão em um sonho e em uma alucinação também são irreversíveis, tais como as ocorrências dos fenômenos pela alma enganada pelo gênio maligno, que dispôs a ordem fenomenal ao seu gosto.

   Um outro argumento frágil é sua suposta refutação do idealismo. A experiência interna só é possível pela experiência externa. Logo, se tenho consciência de minhas próprias experiências é porque há objetos exteriores a mim... além disso a percepção de minha existência no tempo só é possível sob a assunção da existência de algo fora de mim. O problema com esse argumento é que um gênio maligno não teria dificuldade alguma em produzir em nós experiências internas como se fossem externas, incluindo nisso a percepção de um tempo supostamente objetivo.

 

 

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Há uma maneira forte e uma maneira fraca de se interpretar a Crítica. A primeira pode ser dita mentalista-fisicalista, enquanto a segunda pode ser chamada de conceptualista. A interpretação feita até aqui é mentalista-fisicalista. Mas a maneira de se entender a Crítica privilegiada por muitos intérpretes contemporâneos é a conceptualista, uma vez que ela salva o texto de grandes incoerências.

   Segundo a interpretação forte a unidade transcendental da consciência deve ser entendida como um Eu transcendental que seja uma pura atividade sintetizadora. Espaço, tempo e categorias são vistos como puramente subjetivos. A coisa em si (o domínio noumênico) seria alguma coisa incognoscível, mas existente, real. Segundo essa interpretação, somos literalmente os legisladores da natureza. Essa maneira de ver torna a Crítica incoerente: a coisa em si passa a ser tratada como objeto de aplicação da categoria causalidade e mesmo das categorias de realidade e existência. Ela é vista como algo real a causar os estados fenomenais. Contudo, as categorias foram feitas para serem aplicadas ao mundo fenomênico, sendo isso o que garante a aplicabilidade de nossos juízos sintéticos a priori.

   Diante desses problemas, a maneira de salvar a Crítica de inconsistências parece ser a interpretação conceitual. Segundo essa interpretação, o texto de Kant seria algo como uma detalhada análise do conceito de experiência. Sob essa perspectiva, o conceito de unidade transcendental da consciência passa a dizer respeito à condição lógica de possibilidade do trabalho de síntese. O conceito de coisa em si, por sua vez, torna-se um conceito limitador: o entendimento limita a sensibilidade ao dar o nome de coisa em si às coisas consideradas fora do domínio experiencial.

   A interpretação conceitual encontra dificuldades textuais: Kant escreve que os nossos sentidos são afetados pelos objetos... Isso parece envolver a ideia de que objetos noumênicos são de fato coisas que causam as sensações. O intérprete conceptualista é, porém, livre para expurgar da crítica elementos secundários e problemáticos. Ele dirá que quando falamos de noumena estamos fazendo uso de um simples conceito limitador. A coisa em si é o inseparável correlato do fenômeno, existindo assim como o outro lado de uma mesma folha de papel, o lado que não podemos ver! O noumenon é “a coisa que aparece sem o seu aparecer”... O problema é que essas metáforas são insatisfatórias: o outro lado da folha de papel pode ser visto e descrito, a coisa em si não. Como notou Wittgenstein, o conceito de fronteira exige que sejamos capazes de pensar o que está do outro lado dela. O conceito de um limite que só contém o lado de cá parece incoerente. E falar da coisa que aparece à parte o seu aparecer parece pura retórica. Assim, o conceito de coisa em si, tal como Kant supostamente o pensou, parece inconsistente e no final das contas ininteligível.

   Afora isso, a Crítica não é um livro de lógica formal. Ele visa explicar processos cognitivos que se dão no tempo. Se abstraímos do conteúdo de conceitos como o do eu pensante e da atividade de síntese dele proveniente, o que resta é um espúrio esqueleto estrutural.

 

 

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Na analítica dos conceitos Kant deu uma importante contribuição à filosofia sobre a qual vale a pena chamarmos atenção. Para ele os conceitos são capacidades para classificar e ajuizar, de modo que ele via os conceitos como habilidades governadas por regras. Como você deve estar lembrado, os empiristas tendiam a interpretar conceitos como imagens mentais. Essa maneira de ver sempre foi problemática. Afinal, para identificar uma imagem parece que precisamos presumir seu conceito. Além disso sempre foi difícil explicar ideias gerais e abstratas. Com a noção de conceito como envolvendo essencialmente a noção de regra esse problema desaparece. As regras conceituais possuem critérios de aplicação que podem demandar a construção de imagens, mas agora de forma inteiramente flexível. Por exemplo: se defino o conceito de triângulo como “figura plana fechada formada por três semi-retas que se tocam em suas extremidades”, tenho uma regra cujos critérios de aplicação me permitem formar imagens de triângulos retângulos, equiláteros, isósceles e escalenos. Não caio assim no problema criado por Locke de imaginar um triângulo que seja tudo isso e nada disso ao mesmo tempo. Outro exemplo pode ser dado pelo conceito de cadeira. Podemos defini-lo como “um banco não veicular com encosto feito para uma só pessoa se sentar de cada vez”. A regra aqui expressa me permite imaginar cadeiras de balanço, cadeiras de rodas, cadeiras elétricas, poltronas e tronos com satisfazendo os critérios dados pela definição. Mas coisas como sofás, assentos de carro e de avião, cadeiras esculpidas pelo vento na rocha são excluídas dos critérios da regra conceitual.

   Na continuação da analítica Kant descobre que os conceitos puros do entendimento e as intuições sensíveis são completamente heterogêneos. É necessária uma ponte que ligue as categorias às intuições fenomênicas, permitindo sua aplicação. Essa ponte precisa ser algo homogêneo tanto às categorias quanto à intuição fenomênica. Trata-se aqui do que Kant chamou de esquematismo. Mesmo conceitos mais comuns possuem seus esquemas particulares, como o conceito de cachorro. Kant pensa que podemos fazer um esquema empírico de um cachorro como um pequeno animal quadrúpede e que isso nos permite identificar cachorros e aplicar o conceito de cachorro ao animal. Esse é um produto da imaginação empírica que parece regredir ao triângulo que é tudo e nada de Locke. Com as categorias não é muito diferente. Para cada categorias há um esquema temporal próprio, por exemplo: para a categoria de substância temos a permanência no tempo (substância é o que permanece o mesmo); para a categoria de causa e efeito temos a sucessão temporal do múltiplo segundo uma regra; para a categoria de ação recíproca temos a simultaneidade temporal; para a categoria de realidade temos a existência de um objeto no tempo; para a categoria de necessidade temos a existência de um objeto em todos os tempos. É interessante compararmos aqui o esquematismo de Kant com a ideia defendida por Michael Dummett[19] e retomada por Ernst Tugendhat[20], segundo a qual conceitos são basicamente regras criteriais de identificação de nomes próprios ou de aplicação de predicados. Essas regras criteriais podem demandar a formação de elementos espaço-temporais imagéticos como critérios de sua aplicação.

 

 

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Chegamos, por fim, à dialética transcendental. Seu objeto de estudo é a atividade da razão. A razão é a capacidade de relacionar juízos fazendo inferências. O objetivo de Kant é duplo: investigar a razão em si mesma e investigar os usos ilusórios da razão. A razão pura se constitui para Kant no esforço de unificar, associando sequências de juízos introduzidos em raciocínios silogísticos, na busca de sínteses cada vez mais amplas, com o objetivo último e inatingível de unificar toda a experiência. A razão procura uma explicação última para tudo e faz isso guiada pelo que Kant chamou de ideias transcendentais da razão. Essas ideias da razão são conceitos diretivos, ou seja, conceitos que não possuem objeto dado na intuição sensível, alcançando apenas o nível do entendimento, mas que tem a função de orientar o raciocínio.

   As ideias da razão são arranjadas em três classes:

 

A primeira contendo a unidade absoluta (não-condicionada) do sujeito pensante; a segunda a unidade absoluta da série das condições da aparência; a terceira, a unidade absoluta da condição de todos os pensamentos em geral.[21]

 

Essas formas da razão são respectivamente as da Alma, Mundo e Deus, usadas em sentido técnico. A ideia de alma orienta o raciocínio em direção a uma unidade absoluta que só poderia ser preenchida por um sujeito incondicionado noumênico que está além da esfera da experiência possível. Seu modelo de raciocínio (segundo Kant) é o do silogismo categórico: “Todo M é P, Todo S é M; logo, todo S é P”. A ideia do mundo orienta o raciocínio em direção à unidade formada por um incondicionado noumênico também situado além da experiência possível. Seu modelo de raciocínio é o do silogismo hipotético: “Se A então B, A é dado; logo: B”. E a ideia de Deus orienta os raciocínios em direção a uma unidade absoluta que seria um incondicionado noumênico determinante tanto do mundo quanto da alma. Ela depende do silogismo disjuntivo: “A ou B, não-A; logo: B”.

   Como chegamos a essas ideias? O que elas são? A resposta é: pela tentativa de tornar as premissas absolutas. Sempre que raciocinamos precisamos de premissas. Mas as conclusões só serão verdadeiras se as premissas também o forem. Mas então precisamos de novos raciocínios, novas inferências para justificar essas premissas e assim por diante... A razão procura por uma base absoluta para as premissas, o incondicionado, mesmo que nunca possa encontra-lo. Eis um exemplo exposto por Kant em um silogismo:

 

Todos os homens são mortais.

Todos os scholars são homens.

Logo: todos os scholars são mortais.

 

A conclusão se segue da premissa maior e da menor. Mas podemos nos perguntar pela razão da premissa maior, considerando-a como a conclusão de um pró-silogismo:

 

Todos os animais são mortais.

Todos os homens são mortais.

Logo: todos os homens são mortais.

 

Com isso unificamos juízos como “Todos os elefantes são mortais” e “Todos os répteis são mortais”. Mas podemos agora prosseguir submetendo a premissa “Todos os animais são mortais” a um processo similar, exibindo-a como a conclusão de um pró-silogismo cuja premissa maior seja “Todos os seres vivos são mortais”, com o que unificaremos uma gama ainda maior de juízos.

   A razão, diversamente do entendimento, não produz juízos. Mas ela conecta os juízos uns aos outros em um processo de justificação que não tem fim. A máxima lógica da razão é proceder “sempre mais para cima” em busca de unificações cada vez maiores, progredindo sempre em direção a uma suposta premissa que não seja condicionada por nenhuma outra. A razão busca sempre o incondicionado, mas tudo o que ela encontra é o condicionado, uma vez que o incondicionado nunca pode ser dado à experiência. Daí o lamento de Novalis: “Buscamos por toda parte o incondicionado e encontramos somente coisas”.[22]

   Vale lembrar aqui que Karl Popper aplicou a sugestão de um conceito diretivo à ideia de uma verdade absoluta. Para ele teorias científicas com o mesmo escopo podem ter maior ou menor verossimilhança com relação a um ideal de uma verdade absoluta. Assim, a teoria da gravitação na relatividade generalizada tem maior verossimilhança com o ideal de uma verdade absoluta do que a teoria newtoniana da gravitação. Afinal, apesar de possuírem o mesmo escopo, a primeira explica a deflexão da luz por campos gravitacionais, a precessão exata de Mercúrio, etc., o que a teoria newtoniana não é capaz. Mas, nota Popper, mesmo que chegássemos pela ciência à verdade absoluta, não seríamos jamais capazes de identificá-la como tal, uma vez que não poderíamos saber se novas experiências não nos forçariam a questioná-la.

 

 

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Chegamos agora à parte negativa da dialética, a crítica das ilusões da razão que constituíam o que era considerado como metafísica dogmática por Kant. Para ele as ideias da razão não são nem derivadas da experiência, como pensaria um empirista como Locke, nem são representações da coisa em si, como poderia ter pensado um racionalista como Descartes. Dentro do escopo da razão pura as ideias de alma, mundo e Deus tem como única função unificar juízos, sem serem capazes de se referir a absolutamente nada. É nesse ponto que entram em questão as ilusões da razão. Por não atentar para essa função meramente diretiva e por tratar as ideias da razão como se elas se elas fossem conceitos ordinários referindo-se a coisas em si ou a fenômenos, filósofos foram induzidos a realizar investigações equivocadas sobre a existência da alma, da origem do mundo e da existência e natureza de Deus.

   Para Kant a psicologia especulativa produz ilusões concernentes à ideia de alma, como se nos fosse possível conhecer um eu absoluto como objeto noumênico. No tocante à ideia de alma, a razão produz um paralogismo que consiste em considerar o “eu penso” unificador a consciência como se ele fosse um substrato unificador substancial acessível à experiência. Contudo, a categoria de substância só pode ser aplicada aos dados sensíveis, mas nunca ao sujeito de todo o pensamento. A cosmologia especulativa produz ilusões sobre a ideia do mundo, como se fosse possível conhecer a coisa em si como fenômeno ou como objeto noumênico. E a teologia especulativa produz ilusões sobre a ideia de Deus, como se fosse possível conhecer a causa noumênica tanto do sujeito quanto do objeto fenomenal.

   Não pretendo discutir aqui em qualquer detalhe os argumentos de Kant com respeito aos paralogismos ou às antinomias. Quero considerar apenas a famosa crítica feita por Kant ao argumento ontológico de Anselmo para provar para a existência de Deus, uma vez que ela está na origem de uma linha de pensamento importante com respeito ao conceito de existência. Para Anselmo Deus é o que de maior pode ser pensado. O tolo (i.e., o ateu) afirma que Deus não existe. Mas ao dizer isso ele pressupõe a possibilidade de que exista algo maior do que o que de maior pode ser pensado, ou seja, o Deus existente. Mas isso é contraditório. Logo, Deus existe.

   Para Kant o problema com o argumento se encontra no fato de que a existência não é um predicado. Por isso a atribuição de existência não adiciona nada ao conceito: a existência de 100 táleres nada adiciona ao conceito de 100 táleres.[23] Não é certo, porém, que a existência não seja um predicado. Mais adequado seria dizer que a existência como um predicado de ordem superior. Gottlob Frege percebeu isso. Para ele a existência é a propriedade de uma função conceitual de que sob ela cai ao menos um objeto. Por exemplo, quando digo que a Lua da terra existe, estou dizendo que ao menos um objeto cai sob o conceito de Lua da terra.[24] Como a função conceitual já é uma propriedade, a existência passa a ser aqui uma propriedade de segunda ordem, uma propriedade-propriedade. Melhor dizendo: ela é a propriedade de certas propriedades que atribuímos predicativamente a um objeto.

   Posso explicar melhor o que acabei de dizer usando um pouquinho de lógica predicativa.[25] Considere o enunciado: “Cavalos existem”. Esse enunciado pode ser lido como “Existe ao menos um x, tal que x é um cavalo”, ou ainda: “Ex(Fx)”, onde ‘E’ = existe e ‘F’ = cavalo. O F entre parêntese designa a propriedade de x de ser um cavalo. E o quantificador existencial E tem como objeto a propriedade F de x, ou seja, ele é apenas uma propriedade de segunda ordem de x, ou seja, uma propriedade-propriedade de x.

   Há uma maneira mais completa de se entender a existência, baseada em Michael Dummett e Ernst Tugendhat, que posso expor aqui. Para Frege um predicado exprime um sentido, que por sua vez deve ter uma referência. Frege nunca explicou o que seria o sentido de um predicado. Mas o entendimento mais natural seria aquele no qual o sentido do predicado seria o conceito, a regra conceitual, sendo a referência a propriedade do objeto referido pelo sujeito em enunciados predicativos singulares, enunciados do tipo Fa. Isso nos sugere que a existência nada mais seja do que uma propriedade da regra conceitual, qual seja, a propriedade da efetiva aplicabilidade da regra conceitual expressa pelo predicado! Com a expressão ‘efetiva aplicabilidade’ não quero dizer uma simples possibilidade de aplicação, mas uma aplicabilidade que pode ser tida como certa, dadas as condições adequadas. Para que seja excluída a aplicabilidade meramente hipotética, melhor dizer que a existência é a efetiva ou garantida aplicabilidade da regra de atribuição de um predicado. A aplicabilidade pode ser garantida por verificação (ex: o cavalo branco no estábulo existe porque eu o vi), mas também por sua coerência outros enunciados (como essa é uma escola de equitação, eles devem ter cavalos). Note-se que não é necessário para a existência que existam sujeitos epistêmicos capazes de aplicar a regra. A existência não é um conceito antropomórfico. Além do mais, não é necessário sequer que as regras conceituais em questão existam. O importante é que, caso elas existam e caso existam sujeitos cognitivos em condição de aplicá-las, elas se demonstrem garantidamente aplicáveis.

   Uma objeção importante ao que acabei de dizer se encontra na ideia de que se considerarmos a existência como a propriedade de uma regra conceitual parece que ela é algo que se encontra flutuando acima do objeto do qual afirmamos existência. A alternativa a isso é considerar a existência como uma propriedade disposicional do objeto em consideração, qual seja, a propriedade do objeto de ter a sua regra conceitual garantidamente aplicável a ele caso ela for usada sob condições adequadas. Há objetos que não possuem essa propriedade disposicional, objetos meramente imaginários. Por exemplo, a Torre de Babel. Mas outros objetos, como a Pirâmide de Quéops, possuem essa propriedade. Por isso a Torre de Babel não existe, enquanto a pirâmide de Quéops existe. Nesse caso a existência passa a ser a propriedade de um objeto pertencente a certo domínio, não importa qual, de ter a sua regra de identificação garantidamente aplicável a ele.

   Claro, em um contexto ficcional a Torre de Babel será um objeto existente, pois esse objeto ficcional possui a disposição de ter sua regra de identificação garantidamente aplicável a si mesmo no contexto bíblico. Com isso explicamos também porque podemos dizer que tudo existe, uma vez que qualquer coisa concebível pode ter a disposição de ter sua regra de identificação garantidamente aplicável a si mesma. E com isso explicamos, por fim, porque podemos dizer que a própria existência existe. É que a disposição de uma regra de identificação de ter uma regra de identificação de ordem superior garantidamente aplicável a si mesma também existe.[26]

 

 

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A presente exposição do pensamento kantiano restará incompleta se não considerarmos ideias e conclusões de sua crítica da razão prática. Para Kant, assim como existe uma razão pura teórica, existe também uma razão pura prática, que tem por objetivo investigar o que ele vê de a priori na determinação das decisões e ações humanas.

   Aqui o compromisso kantiano com o racionalismo torna-se patente. Tudo aquilo que ele rejeitou ao criticar a razão pura teórica ele passa a aceitar em sua razão pura prática. E o que ele irá criticar aqui é a razão “impura” prática, ou seja, aquelas éticas que colocam as origens da moral na experiência empírica, como acontece com as éticas que colocam o bem no prazer (hedonismo), nas ações onde prevalece o bem maior para todos (o utilitarismo) ou na felicidade humana enquanto tal (eudemonismo). Para ele essas concepções obedecem ao que ele chama de imperativo hipotético, que tem a forma: “Se queres obter X deves fazer Y”. O imperativo hipotético é teleológico, imiscuindo questões empíricas na teoria moral, o que para ele a faz deixar de ser necessária e universal. Para que a moralidade tenha valor absoluto ela deve, pois, obedecer à lei pela própria lei e não por algum outro motivo. O imperativo categórico último é para ele o do dever: devemos obedecer às leis morais. A forma do imperativo categórico é: “Devemos fazer X pelo simples dever de fazer X”.

   Para que o imperativo categórico se torne factível Kant apresentou três formulações explicitadoras interligadas, que servem como meta-regras a serem aplicadas às máximas embutidas nas ações de modo a estabelecê-las como moralmente corretas. Elas são:

 

1)    Age de forma que a máxima embutida em sua ação possa ser sempre universalizada para todos os agentes.

2)    Age de forma que a tua vontade possa considerar a si mesma como a vontade que qualquer ser humano estaria disposto a aprová-la como instituidora de uma legislação universal.

3)    Age de forma que possas tratar a humanidade, tanto a sua quanto a de outros, sempre como um fim e nunca como um meio.[27]

 

Considere, por exemplo, ações como as de mentir ou roubar. Elas contêm embutidas as máximas de que a pessoa pode roubar, de que a pessoa pode tratar o próximo como um meio, de que a vontade própria não precisa ser aprovada por outros seres humanos. Mas essas máximas ferem o imperativo categórico. Não podemos (1) querer que todos mintam ou roubem, pois logo seremos também ludibriados e roubados, nem podemos (2) querer que nossa vontade de mentir ou roubar seja instituída como a vontade que qualquer ser humano quereria instituir em uma legislação universal. E também parece claro que (3) tratar os outros como meio, mentindo ou roubando, infringe nossa intuição do que é certo.

   Para que o imperativo categórico seja aplicável ele pressupõe a satisfação de três condições que Kant chamou de postulados da razão pura prática. Esses postulados são:

 

1)    A liberdade: para que o homem possa satisfazer o imperativo categórico ele precisa ter a liberdade de agir em conformidade com a razão prática, ou seja, que seja capaz de em suas decisões e ações transcender o determinismo universal do mundo fenomênico.

2)    A imortalidade: o ser humano deve ser capaz de progredir em direção a uma adequação completa de sua vontade à lei moral. Como esse progresso é infinito, precisamos se dotados de uma duração indefinida, ou seja, de uma alma imortal.

3)    A existência de Deus. Não há na lei moral nenhum fundamento de uma necessária ligação entre lei moral e uma felicidade proporcional a ela. Por conseguinte, é preciso que essa desproporção seja ajustada pela existência de Deus como o elemento causal necessário à existência do sumo bem (se não somos recompensados ou castigados pelo que fazemos no mundo fenomenal, isso deverá acontecer quando nossa alma se encontrar no mundo noumênico).

 

Aquilo que Kant havia rejeitado como impossível de ser provado através da razão pura retorna com toda a força em seu exame da razão prática. Com isso nós chegamos a um resumo geral da concepção de mundo epistemológica, metafísica e moral de Kant. Hoje essa concepção nos lembra da ferina, mas acertada observação feita por Bertrand Russell ao notar que Kant exemplifica o fato de que a maioria das pessoas jamais se libertam das verdades auridas quando se encontravam no seio materno, de modo que depois de ter sido acordado de seu sonho dogmático por Hume, Kant logo inventou um sonífero que lhe permitisse dormir outra vez. Hegel também percebeu que havia algo de errado, vendo na ética kantiana um subproduto do pessimismo antropológico luterano. Para ele Kant teria em sua ética desnecessariamente separado a sensibilidade da razão, transformando o ser humano em uma espécie de mártir do dever. Mas o ser humano, pensava ele, é um universal concreto, que deve ser capaz de harmonizar a sensibilidade particular à razão universal, ao invés de ser repressivamente submetido a ela. Esses julgamentos críticos parecem confirmados pelas considerações que faremos a seguir.

   Uma primeira consideração é que a pergunta sobre o para que serve o dever é capaz de ser colocada sempre que nós nos percebemos no dever de fazer alguma coisa. O sentimento do dever não parece ter, se tomado em isolamento, nada de justificadamente moral. E a ideia de que temos a intuição do que é certo e do que é errado, do que devemos ou não fazer, como já notei, pode ser profundamente enganosa. Mahatma Ghandi sentia que era seu dever fazer greve de fome para conseguir a libertação da Índia. Mas também Adolf Eichmann sentia que era seu dever obedecer aos seus superiores e organizar a deportação dos judeus para os campos de extermínio da melhor maneira possível, mesmo não tendo pessoalmente nada contra os judeus. Nada indica que tenhamos uma capacidade incondicionada de distinguir o que seja “fazer X pelo puro dever de fazer X” em um sentido moral. Algo aqui está faltando. E a resposta natural é que esse algo deve ser a finalidade do dever. As deficiências da deontologia nos fazem perguntar sobre as razões de seguirmos a lei, o que nos conduz a uma normatividade justificada pelo valor moral de suas consequências concretas.

   Vejamos agora o que podemos retirar dos três princípios que para Kant explicitam o imperativo categórico. O primeiro, o da universalização, encontra um bom número de contraexemplos. São muitos os casos de mentiras benignas. Assim, imagine que durante a Segunda Guerra um alemão consciente esconde um judeu em sua fábrica. Quando um oficial nazista bate à porta para saber se ele sabe alguma coisa sobre o paradeiro de seu ex-empregado judeu, é obvio que ele deve mentir. Mas para Kant ele deve falar a verdade, pois se mentisse ele infringiria o imperativo da universalização. Também contraexemplos às duas outras formulações podem ser facilmente encontrados. Quando um perseguido político usava um passaporte falso para poder escapar da Lituânia ocupada pelos nazistas, não é certo que ele deveria tratar o guarda da alfândega como um fim em si mesmo. Ele deveria tratá-lo como um meio para que pudesse atravessar a fronteira, tratando-se com isso a si mesmo como um fim. Ou não? Finalmente a vontade moral das pessoas é muito variável para servir de parâmetro. Uma vontade comum a todas as pessoas, ou é impossível de ser encontrada, ou é trivial.

   A conclusão é que os princípios do imperativo categórico de Kant pouco fazem para determinar o comportamento moral. O que eles podem fazer é servirem como regras auxiliares, regras de polegar, tal como “Não faças aos outros o que não queres que façam a ti mesmo”.

   E quanto ao imperativo categórico do fazer X pelo dever de fazer X, cabe a pergunta: quem estabelece o que é o dever? Na falta de algo mais, quem estabelece o que é o dever é quem tem o poder, na época de Kant as autoridades de um sistema totalitário. Acontece aqui o que acaba por acontecer com as deontologias em geral. Não se tem como fundamentar regras como a dos dez mandamentos, senão recorrendo à autoridade divina. No caso de Kant, os mandamentos são reduzidos a meta-regras. Se elas forem literalmente interpretadas elas se tornam rígidas demais, produzindo um número de valorações morais injustas. Mas se isso não for feito, elas se tornam abertas a inúmeras exceções, acabando por servir a quem tiver mais poder. O mesmo acontece com outros sistemas deontológicos. Se estritamente seguidos eles servirão para impor uma ordem à tribo, mesmo que a custo de injustiças. Mas se forem interpretados de uma maneira frouxa ele de pouco servem. Deontologias puras acabam por servir a sistemas éticos de fundamentação autoritária, seja ela divina ou secular. E o rigor e inflexibilidade morais que daí podem se seguir são uma porta aberta para o arbítrio.

   Devido à inflexibilidade e relativismo circunstancial dos mandamentos das éticas deontológicas, elas podem levar a conflitos morais como o descrito por Lawrence em seu livro Os Sete Pilares da Sabedoria. Ele, um inglês que se doutorou em Oxford, vestido de árabe e falando a língua local, aceitou o compromisso de liderar a revolta árabe. Contudo, a todo momento as regras de sua moral refinada se chocavam com os ditames rudimentares e supersticiosos das tribos árabes. Por vezes a sua decisão prevalecia, como quando decidiu voltar sozinho para encontrar um árabe que havia se perdido da caravana e que os outros consideravam morto por decisão de Alá. Mas na maioria das vezes a moral da tribo prevalecia, como quando foi levado a matar pessoas já rendidas após o assalto de um trem.

   Uma razão pela qual dou preferência ao utilitarismo de duas camadas brevemente sugerido no capítulo 1 (seção 3) é que por meio dele uma sociedade é capaz de alterar e aprimorar as regras morais, na medida em que elas promovem o bem geral, e não a partir de algum dever fundado em uma intuição arbitrária geralmente imposta por alguma autoridade. Ele tornaria os princípios absolutos sugeridos por Kant em meta-regras auxiliares geralmente válidas, na medida em que satisfizerem a função de licitar o seguimento das regras utilitárias definidas como produtoras do bem geral em um meio social apropriado.

 

 

 

 



[1] Strawson, The Bounds of Sense, (London: Methuen 1966), p. 11

[2] Diário, 1/11/1914.

[3] Anthony Kenny observa que Derrida foi aceito nos departamentos de arte nos Estados Unidos, mas não em departamentos de filosofia, onde as pessoas tem mais experiência em distinguir filosofia autêntica de suas falsificações. Anthony Kenny, A New History of Western Philosophy (Oxford: Clarendon Press 2007) vol. IV, p. 96.

[4] Ver capítulo II, sec. 8.

[5] Ver entrevista no vídeo: “Chomsky Criticism of Postmodernism”, Youtube MonO, Mar. 22, 2023, minutos 7,18-8,00.

[6] Garrett Thomson, Bacon to Kant (Illinois: Long Grove 2002), p. 246.

[7] Emmanuel Kant: Kritik der reinen Vernunft. A primeira edição apareceu em 1781; a segunda edição, fortemente revisada, apareceu em 1787.

[8] Crítica da Razão Pura, Introdução.

[9]  Crítica da razão pura, B 15-17.

[10]   Crítica da razão pura, B 16.

[11] Crítica da razão pura B XVI-XVII.

[12] Ver capítulo sobre Leibniz, sec 4.

[13] Russell, A History of Western Philosophy (New York, Touchstone 1972) p. 714-715.

[14] Ibid. p. 715.

[15] Como John Searle notou: “Questão para Kant: “Como é a publicidade possível? Como é possível que eu e você vejamos a mesma aparência? Ou talvez não possamos?”  (resumo não publicado da Crítica).

[16] Crítica da Razão Pura, B 74-75.

[17] CRP B 131-132-134.

[18] Intérpretes tentam salvar Kant de si mesmo, concebendo esse X como um constructo formal. Mas isso é incoerente com o a ideia de uma unidade transcendental como atividade aperceptiva, bem como com as consequências místicas retiradas de sua Crítica da Razão Prática. Ver ainda seção 8 do presente capítulo.

[19]  Michael Dummett: Frege: Philosophy of Language (London: Duckworth) 1981, pp. 194, 229.

[20]  Ernst Tugendhat: Logisch-Semantik Propädeutik  (Stutgart: Reklam 1983), p. 236

[21] Crítica da razão pura, B 391.

[22]Wir suchen überall das Unbedingte und finden immer nur Dinge.“

[23] CRP A 599, B 627. A 596 – B 630

[24] Frege: Die grundlagen der mathematik, sec. 59.

[25] John Searle: “The Unity of the Proposition”, in Philosophy in a New Century (Cambridge: Cambridge University Press 2008), p. 176

[26] Claudio Costa: Philosophical Semantics: Reintegrating Theoretical Philosophy (CSP 2016), Ch. IV, sec. 12.

[27]  Fundamentação da metafísica dos costumes (Lisboa: Edições 70), pp. 59, 69.