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quinta-feira, 10 de maio de 2012

# A VERDADEIRA TEORIA DA VERDADE

Claudio Ferreira Costa
Ensaio cuja versão última foi publicada no livro Paisagens Conceituais (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 2011)





A VERDADEIRA TEORIA DA VERDADE

A pintura verdadeira do erro é a pintura indireta da verdade. A pintura verídica da verdade é a única verdadeira.
 Novalis


Quero aqui discutir brevemente as quatro principais teorias da verdade, em uma tentativa de avaliá-las comparativamente. As duas teorias a serem inicialmente examinadas – a teoria pragmática e a da redundância – serão demonstradas improváveis, embora o seu exame nos permita compreender melhor outras coisas. As outras duas teorias – a correspondencial e a coerencial – são os candidatos mais plausíveis. Contudo, espero tornar manifesto que a teoria coerencial pode ser integrada à teoria correspondencial, ao menos na forma em que está última será brevemente elaborada aqui. Com isso ficaremos providos de melhores razões para apostar que a teoria correspondencial seja a verdadeira teoria da verdade.

A teoria pragmática
Naquilo que ela tem de mais característico, a teoria pragmática da verdade proposta por William James afirma o seguinte: uma proposição é verdadeira se houver vantagem prática em sustentá-la.[1] Assim, para James “Deus existe” é uma proposição verdadeira, pois é vantajoso crer em Deus.
     Uma objeção à teoria pragmática é a de que há muitas proposições teóricas reconhecidas como verdadeiras como, por exemplo, “A galáxia 0402+379 tem em seu centro um par binário de buracos negros supermassivos”, que são perfeitamente inúteis e que, por conseguinte, deveriam ser falsas. Em resposta a isso a teoria pragmática pode ser estendida, admitindo-se que além da vantagem prática deva existir uma vantagem teórico-cognitiva na admissão de certas proposições. Mesmo assim – ao menos sob a presente formulação[2] – a teoria pragmática torna-se freqüentemente contra-intuitiva, pois parece que pode ser vantajosa a adoção de crenças falsas, bem como desvantajosa a adoção de crenças verdadeiras, tanto em um sentido prático quanto cognitivo. Como escreveu o poeta T.S. Eliot, “human kind cannot bear very much reality”. A mente humana é por natureza voltada para o sucesso no mundo ao redor e tende a admitir verdades apenas enquanto elas lhe servem, de outro modo rejeitando-as através de mecanismos de defesa como o da racionalização. Além disso, a teoria pragmática tem conseqüências relativistas: o que é verdadeiro para alguns pode ser falso para outros, ferindo um princípio da contradição. Para os teístas crer em Deus pode ser vantajoso pela segurança que traz. Para os ateus crer em Deus pode ser degradante, por diminuir a autonomia humana e comprometer-nos com idéias primitivas, como as de pecado e danação eterna. Quem estará certo? A teoria pragmática não oferece suporte para uma decisão racional.
     Em meu parecer a teoria pragmática incorre em uma falácia causal. Ela confunde a verdade com um efeito freqüente da adoção de idéias verdadeiras, que é a utilidade. Todos concordariam que o conhecimento da verdade é freqüentemente útil; mas dizer que algo é verdadeiro porque é útil é confundir o efeito – a utilidade – com a sua causa freqüente – a verdade.

Teorias deflacionárias: redundância
A mais característica teoria deflacionária da verdade, já proposta por Frege, é a da redundância.[3] Ela parte da constatação de que asserções do tipo “p é verdadeiro” podem ser substituídas por asserções do tipo “p”, sem que nada se perca. Para P.F. Strawson, que já foi um proponente dessa concepção, eu nada terei acrescentado à minha afirmação “Está chovendo” se tiver dito “É verdade que está chovendo”, além de certa ênfase, de modo que esse último proferimento poderá ser substituído por “É... está chovendo” ou “Com efeito... está chovendo”. Por conseguinte, o predicado ‘...é verdadeiro’ nada acrescenta ao conteúdo da asserção.[4] F.P. Ramsey, outro defensor da teoria da redundância, considerou o caso da asserção “Tudo o que ele diz é verdadeiro”, em que o predicado “...é verdadeiro” não pode ser eliminado.[5] Contudo, essa asserção pode ser substituída por “Para todo p, se ele afirma p, então p”, na qual o predicado “...é verdadeiro” é efetivamente eliminado. Para Ramsey, mesmo que “então p” soe incompleto, parecendo demandar substituição por “então p é verdadeiro”, isso não se deve a uma deficiência da teoria, mas de nossa linguagem.
     A teoria da redundância nasce pelo visto de uma falha um tanto trivial. Antes de expor o argumento, porém, é preciso lembrar de uma conhecida diferença entre (a) a contemplação de um pensamento (proposição) e (b) o ato judicativo, através do qual se atribui valor-verdade ao pensamento. A comunicação do ato judicativo sobre um pensamento é o que chamamos de afirmação ou asserção do pensamento. Considere a diferença entre as sentenças:

     1a  Afirmo que Colombo descobriu a América.
     1b  Colombo descobriu a América.

     Ambas exprimem o mesmo pensamento ou proposição, que em cada uma delas é afirmado. Mas só na primeira a asserção é verbalmente explicitada. Normalmente, nossas asserções são do tipo (1b), mantendo implícito o ato assertivo, que por sua vez é expressão lingüística de um ato judicativo, que é um ato mental de atribuição de verdade ao pensamento. A razão disso é que o ato assertivo é tão comum na linguagem que nem sequer precisa ser explicitado. Evidentemente, “Afirmo que Colombo descobriu a América” quer dizer o mesmo que “É verdade que Colombo descobriu a América”: ambos os proferimentos visam comunicar um mesmo ato judicativo.
     Considere agora as seguintes sentenças:

     2a  É possível que Colombo tenha descoberto a América.
     2b ’Colombo descobriu a América’ é uma sentença sobre
           um navegador italiano.

     Nelas a proposição ou pensamento é apenas tomada em consideração ou contemplada, não vindo a sua expressão sentencial acompanhada de asserção nem de um ato judicativo. Frege tinha um sinal próprio para o ato judicativo, o “├” (Urteilstrich). Devemos, pois, distinguir ├p, quando o pensamento expresso por p é afirmado ou judicado, de p simplesmente. O sinal ‘├’ significa algo como “Aceito (aceitamos) a verdade de...”.
     Considerando o que foi dito sobre a asserção e o juízo podemos agora observar o seguinte. Quando o defensor da teoria da redundância diz que a sentença “É verdade que p” se reduz a “p”, ele jamais considera “p” em abstração de sua asserção. Quando ele substitui “É verdade que Colombo descobriu a América” por “Colombo descobriu a América”, este último proferimento quer dizer o mesmo que “Afirmo (ou afirmamos) que Colombo descobriu a América”, e não apenas algo como “É possível que Colombo tenha descoberto a América” ou “’Colombo descobriu a América’ é uma sentença sobre um navegador italiano”. Por conseguinte, tudo o que a teoria da redundância nos mostra é que “p é verdadeiro” pode ser reduzido a “(Afirmo que) p”, ou ainda, “(Ajuízo que) p”. Mas se é assim, aquilo que estamos fazendo quando afirmamos “p é verdadeiro” ao invés de somente “p” é apenas desempacotar o juízo ou a asserção, explicitando-os lingüisticamente. Contudo, a asserção é expressão de um ato judicativo e o ato judicativo é o ato de aceitação da verdade, a atribuição de verdade a uma proposição. Por conseguinte, a eliminação da predicação de verdade não nos livra do problema da verdade, posto que essa predicação já vem embutida no juízo, linguisticamente formulado na forma da asserção.
     Em outras palavras: aquilo que a teoria da redundância evidencia não é que a atribuição de verdade a uma proposição é supérflua, mas que ela pode ser substituída por uma proposição judicada ou asserida, sem que tal atribuição venha lingüisticamente explicitada. Como judicar uma proposição é o mesmo que pensar que ela é verdadeira, e como asserir uma proposição é o mesmo que atribuir publicamente verdade a uma proposição judicada, tudo o que a teoria da redundância realmente faz é varrer o problema da verdade para debaixo do tapete do problema da asserção, onde ele pode permanecer sem ser visto. O que faz com que a teoria da redundância pareça correta é a propriedade de nossas línguas naturais de usualmente não atribuir verdade às proposições de modo explícito, uma vez que o ato de asserir é tão freqüente que a explicitação dessa atribuição se tornou supérflua. Essa é, aliás, a razão do desconforto com a tradução de “Para todo p, se ele afirma p, então p”. Em sua última ocorrência p deveria aparecer aqui como “p é verdadeiro” ou “p é o caso”. Mas se isso fosse feito o contra-exemplo se manteria.[6]

Teoria da correspondência
A teoria correspondencial da verdade é a mais antiga e intuitivamente a mais plausível. É a única que se encontra dicionarizada. Ela foi primeiramente sugerida por Platão no diálogo Sofista, tendo sido reapresentada por Aristóteles em sua Metafísica na forma do famoso dito: “dizer do que é que não é e do que não é que é, é dizer o falso; dizer do que é que é e do que não é que não é, é dizer o verdadeiro”.[7] Em seu ensaio intitulado De Veritate, Tomás de Aquino refere-se com aprovação a Isaac Israeli, um filósofo medieval que sugeriu consistir a verdade na adequação entre coisa e intelecto (Veritas est adaequatio rei et intellectus).[8] Com isso a formulação aristotélica foi substituída por uma outra muito mais sintética, segundo a qual a verdade consiste em as coisas serem como acreditamos que são. Claro que isso é ainda o mais rudimentar dos esboços. No que se segue quero desenvolver uma versão menos tosca (mas ainda assim insuficiente) da teoria correspondencial da verdade, começando pelo trabalho de precisar melhor cada termo da fórmula correspondencial tradicional.

1. Comecemos com a palavra ‘intelecto’, que é vaga demais. Trata-se aqui do problema do portador da verdade: aquilo de que primariamente predicamos a verdade. Ele não pode ser a sentença declarativa, pois esta pode variar sem que aquilo de que predicamos a verdade varie (exs: “Chove”, “Está caindo chuva”, “It rains”). Trata-se mais propriamente daquilo que a sentença declarativa diz. Para isso utilizamos palavras como ‘proposição’, ‘conteúdo proposicional’ ou ‘pensamento’ no sentido fregeano, não-psicológico da palavra. Há, todavia, um problema: por serem consideradas como existentes mesmo na abstração das mentes individuais, proposições ou pensamentos fregeanos costumam ser entendidos como entidades platônicas, sendo para nós hoje difícil a aceitação de semelhantes entidades. Ainda outra opção é entender o portador da verdade como sendo a crença. Mas a crença pertence ao indivíduo psicológico que a tem, sendo por isso contingente e subjetiva; contudo, a verdade não deveria ser propriedade de alguma coisa contingente e menos ainda subjetiva. Minha alternativa entre o Silas do platonismo e o Caribdes do psicologismo consiste em propor que o portador da verdade seja o conteúdo de crença, entendendo por isso um pensamento que é objetivamente (intersubjetivamente) acessível, mas que nem por isso seja capaz de existir fora de suas instanciações em sujeitos psicológicos quaisquer; ele é o conteúdo da crença de algum sujeito psicológico qualquer, que o tenha alguma vez pensado.[9]
     A palavra ‘coisa’ também é pouco adequada, pois não dizemos propriamente de coisas que elas são os correlatos de crenças verdadeiras, mas de uma combinação dada de elementos que geralmente as inclui. Essa combinação, que pode ser chamada de o fazedor da verdade (truth-maker), pode ser uma circunstância ou situação (ex.: “Lúcia está de chapéu”), um estado de coisas (ex: “O livro está sobre a mesa”) um evento (ex.: “A queda das Torres Gêmeas”), um processo (ex.: “A transição para a era da informática”) e outras coisas mais. Quero resumir tudo isso na palavra tradicionalmente mais usada: fato. Acredito que a palavrinha ‘fato’ tornou-se desnecessariamente controversa em filosofia, principalmente por influência de P.F. Strawson.[10] A idéia básica defendida por esse filósofo é a de que o fato não é o fazedor da verdade porque ele não pode ser alguma coisa no mundo, tal como o evento, pois o evento é localizável e datável enquanto o fato não é localizável nem datável, o que se evidencia pelo uso da cláusula-que (that-clause) antecedendo a frase que o exprime. É por isso que usamos a cláusula-que para distinguir o fato de que Cesar atravessou o Rubicão do simples evento da travessia do Rubicão pelas hostes de Cesar. Além disso, podemos apontar para eventos, mas não para o fato etc.
     Difícil crer na força desses argumentos. Em meu juízo, a razão pela qual a palavra ‘fato’ parece designar algo menos identificável no mundo do que a palavra ‘evento’ decorre do fato de que eventos são subfatos de fatos, dado que ‘fato’ é uma palavra guarda-chuva que usamos para designar os mais diversos fazedores da verdade, entre eles os eventos. Melhor dizendo: a diferença em questão não decorre de uma relação de oposição semântica entre as palavras ‘fato’ e ‘evento’, como pensava Strawson, mas de uma relação de hiponímia: ‘fato’ é um hiperônimo de ‘evento’, ‘processo’ e mesmo de ‘situação’ e ‘estado de coisas’. A palavra ‘fato’ abrange ao menos dois grupos genéricos de fazedores da verdade:

(a) circunstâncias, situações, estados de coisas... que são fazedores da verdade estáticos (que não se alteram enquanto duram),
(b) eventos, ocorrências, processos, acontecimentos... que são fazedores da verdade dinâmicos (que se alteram enquanto duram).

Os fazedores da verdade estáticos podem ser empíricamente acessíveis (como o fato-estado-de-coisas de que o livro está sobre a mesa) ou não (como o fato abstrato de que 2 + 2 = 4), enquanto os fazedores da verdade dinâmicos, por envolverem eventos espaço-temporais, são sempre empíricamente acessíveis (como o fato-evento do escorregão de Lúcia).
     Frases que denotam exclusivamente fatos estáticos admitem cláusulas-que muito mais facilmente do que as que denotam fatos dinâmicos. Assim, posso falar da circunstância de a Torre de Pisa ser inclinada, mas também posso falar da circunstância de que ela é inclinada. Posso falar do estado de coisas de o livro estar sobre a mesa ou simplesmente de que ele está sobre a mesa. A escolha é aqui indiferente. Já frases que denotam exclusivamente fatos dinâmicos são mais avessas à cláusula-que. Falo do evento de César ter atravessado o Rubicão, mas não do evento de que ele atravessou o Rubicão. Falo do processo da mudança climática, mas não do processo de que o clima muda. Mas isso não é assim porque eventos não são fatos, mas apenas porque eventos não são fatos estáticos: eles são fatos dinâmicos – um subconjunto dos fatos. Assim, a cláusula-que parece funcionar como um possível complemento, destinado a identificar as frases que denotam fazedores da verdade estáticos, ou seja, uma subclasse dos fatos. O mito de que os fatos são ontologicamente diferentes dos eventos porque, diversamente dos últimos, eles admitem cláusulas-que, resulta apenas da absorção equívoca da classe mais geral dos fatos em sua subclasse de fatos estáticos; da assimilação dos fatos a estados de coisas.
     Outros mitos são o de que fatos são atemporais, contrariamente aos eventos, ou de que podemos apontar para um evento, mas não para um fato. Não só dizemos que o evento de César ter atravessado o Rubicão deu-se em 96 d.C., mas que este fato, pleno de conseqüências, também se deu em 96 d.C. (Esse exemplo é, aliás, de uma ambigüidade enganosa, pois ao falarmos da travessia do Rubicão queremos em geral aludir figurativamente ao estabelecimento de um estado de coisas social irreversível, importante e complexo, que foi a transgressão da lei segundo a qual o exército de Cesar não poderia entrar em território italiano, o que deflagrou a guerra que destruiu a república. Mas isso foi um fato-situação duradouro e não mais um evento!)
     Também não é verdade que não podemos apontar para um fato: posso apontar para o fato de que a torneira está pingando, do copo estar rachado. Claro, como a palavra ‘fato’ é mais abrangente, podemos com ela não só apontar para um evento (dinâmico), mas também designar um estado de coisas (estático) por ele instaurado etc. Por isso podemos apontar para um evento, como o das Torres Gêmeas estarem caindo, mais do que para o fato, mas por mera questão de precisão: o evento ou processo apontado é o que chamamos de um fato dinâmico que está a se realizar. Mas não é errado apontar para o fato de as Torres Gêmeas estarem caindo: é apenas impreciso. A semântica da palavra ‘evento’ não é, pois, a de alguma coisa no mundo espaço-temporal, opostamente à da palavra ‘fato’. Ela é apenas a semântica de uma palavra que se refere a um fato dinâmico caracterizado por ser mais breve do que um processo. Com tais argumentos tentei reestabelecer a reputação de uma palavrinha cujo comportamento semântico tem sido um dos mais vilipediados da filosofia.[11]
     O próximo conceito a ser esclarecido é o de correspondência ou adequação. Uma maneira, em verdade a única concebível, de se entender a correspondência, é como alguma espécie de afiguração.[12] Podemos dizer que, tomados dois conjuntos A e B, a primeira condição para que o conjunto A afigure o conjunto B é a de que os elementos do conjunto A estejam relacionados de forma biunívoca com os elementos do conjunto B.
     No caso que estamos considerando é abstraída qualquer exigência de que os elementos do conjunto A devam ter a mesma natureza que os elementos do conjunto B. Assim, por exemplo, Fa pode ser expressão de um conteúdo de crença constituído por elementos que são um conceito identificador expresso por a e um conceito predicador expresso por F, possuindo os dois elementos expressos por Fa relação biunívoca com um fato constituído de um particular, que é um livro, e de uma propriedade, que é a sua cor vermelha. Em outro exemplo, aRb é expressão de um conteúdo de crença constituído por elementos que são duas expressões de conceitos identificadores, que são a e b, e um conceito predicador relacional R, possuindo cada elemento de aRb uma relação biunívoca com os elementos do fato constituído por dois particulares, que são um livro e uma mesa.
     Uma segunda condição para que haja afiguração é a de que a disposição dos elementos da afiguração entre si seja a mesma que a dos elementos afigurados entre si. Isso não pode significar que deva haver uma relação de disposição entre F e a no primeiro exemplo, nem que devam existir duas relações de disposição no segundo exemplo, uma entre a e R e outra entre R e b, pois isso nos conduziria facilmente a um regresso ao infinito. O que chamamos de disposição decorre da própria natureza categorial dos elementos afigurados, devendo a afiguração refleti-la.
     Contudo, o estabelecimento de semelhante relação de isomorfismo entre os elementos dispostos na figuração e os elementos dispostos naquilo que ela afigura ainda não é suficiente para dar conta da correspondência em termos semânticos. É que para que os elementos do conteúdo de crença possam ser correlacionados aos elementos correspondentes pertencentes ao fato é necessário que cada um desses elementos possua algo que lhe seja distintivo. Considere, por exemplo, as frases:

     O livro está sobre a mesa,
     O gato está sobre o tapete,
     O livro está embaixo da mesa.

Estruturalmente, essas três frases têm a mesma forma aRb. Para distingui-las é preciso, pois, que os elementos biunivocamente relacionados – tanto os conceitos nominadores e os particulares correspondentes, quanto os conceitos predicadores e as propriedades biunivocamente relacionadas – sejam ao menos criterialmente individuados. Isso pode ser conseguido através das definições do livro, da mesa, do gato e do tapete em questão, ou do que significa ‘estar sobre’.
     Parece, enfim, uma hipótese plausível a de supor que a combinação da relação categorial biunívoca dos elementos da afiguração com os elementos do fato afigurado com as individuações semântico-criteriais desses elementos, avaliáveis através de caracterizações criteriais, seja o que mais propriamente constitui o que chamamos de igualdade de conteúdo quando dizemos que o conteúdo de uma crença é igual a certo conteúdo factual. No que se segue entenderemos a correspondência como uma igualdade de conteúdo nesse sentido.

2. Como conclusão das considerações feitas até aqui, a definição correspondencial passa a dizer que a verdade é a correspondência do pensamento (entendido como um conteúdo de crença) com o fato. Já com isso podemos produzir uma definição de verdade como correspondência, na qual o predicado ‘...é verdadeiro’ é identificado ao predicado ‘...corresponde (se adéqua...) ao fato’, ambos funcionando como predicados metalingüísticos aplicáveis a pensamentos ou conteúdos de crença. Segundo essa definição, para qualquer conteúdo de crença p, dizer que p é verdadeiro é o mesmo que dizer que p corresponde ou se adéqua ao fato.
     Podemos exprimir simbolicamente essa definição correspondencial da verdade usando p para exprimir um conteúdo de crença qualquer, V para o predicado “...é verdadeiro” e C para o predicado “...corresponde ao fato”. Esses predicados se aplicam a p em uma metalinguagem semântica referente ao conteúdo ou pensamento expresso por p, o que pode ser mostrado colocando p entre aspas. Eis como fica sendo:

Definição 1:     Vp” = Cp[13]

     Segundo essa definição, a verdade é a propriedade do conteúdo de pensamento ou crença de corresponder ao fato.[14]
     Essa definição depende da aplicação dos predicados monádicos ‘...é verdadeiro’ e ‘...corresponde ao fato’. Contudo, também podemos entender tais predicados monádicos como abreviações de predicados diádicos que, em uma metalinguagem semântica, relacionam o conteúdo de pensamento expresso por p ao fato de que q, da mesma forma que o predicado monádico ‘...é pai’ é uma abreviação do predicado diádico ‘...é pai de...’ Através disso a definição acima pode ser mais completamente explicitada como afirmando que para um conteúdo de crença qualquer p, dizer que p é verdadeiro para o fato q é o mesmo que dizer que p corresponde ou é adequado ao fato q, entendendo-se a correspondência como uma relação de igualdade de conteúdo entre p e q, de modo a podermos dizer que p = q  (uma igualdade de conteúdo supostamente caracterizável através do isomorfismo estrutural e pela similaridade de individuação criterial dos constituintes biunivocamente relacionados). Em um exemplo: dizer que o conteúdo do pensamento expresso por “A Lua é branca” é verdadeiro para o fato de que a Lua é branca é o mesmo que dizer que o conteúdo de pensamento expresso por “A Lua é branca” corresponde ao fato da Lua ser branca.
     Utilizando o símbolo V para o predicado semanticamente metalingüístico ‘...é verdadeiro para o fato de que...’ e utilizando C para o predicado também semanticamente metalingüístico ‘...corresponde ao fato de que...’ temos a seguinte versão formalizada da definição mais completa, em que qualquer conteúdo de crença “p” está sendo metalingüisticamente acessado:

Definição 2:    pVq = “pCq

     Segundo a definição 2, a verdade é a mesma coisa que a propriedade relacional da correspondência (igualdade) do conteúdo de crença com o conteúdo factual.
     As definições 1 e 2 fixam relações estruturais. Contudo, é possível adicionar a elas uma dimensão dinâmica que me parece no final das contas imprescindível, embora costume passar despercebida pelos que consideram a teoria correspondencial da verdade. É isso o que veremos a seguir.

3. Uma interessante e quase esquecida explicitação da noção de correspondência foi proposta por Moritz Schlick há mais de um século.[15] Schlick sugeriu a existência de um ato de aferição de correspondência que nada mais é do que um ato verificacional através do qual se evidencia que o conteúdo de uma hipótese (um conteúdo de crença cuja verdade se quer testar) é idêntico ao conteúdo da observação que verifica essa hipótese (que traduzo como sendo também o próprio fato observado). Essa identidade de conteúdo é a correspondência.
     Para tornar isso claro, suponha que você ouça hoje em algum boletim a frase “Irá fazer bom tempo local amanhã”. Contudo, quando o amanhã chega você sai a passeio e é surpreendido por uma tempestade. Você pensa: “A previsão era falsa”. O que você fez? Ora, você comparou o conteúdo da previsão com o conteúdo da constatação observacional e percebeu que a esperada igualdade não existe. Isso lhe fez concluir que o conteúdo de crença expresso pela frase “Irá fazer bom tempo amanhã” era falso. Se o céu estiver azul você verifica a igualdade entre o conteúdo da observação, o fato verificador, e o conteúdo de crença pensado na suposição, para concluir então que ele é verdadeiro.
     Buscando precisar e generalizar essa sugestão, podemos sugerir que sempre que constatamos a verdade como correspondência com um fato (que de modo algum precisa se restringir a um fato de observação) há um ato verificacional em que três momentos podem ser idealmente distinguidos:

     (1o) O momento de postulação de uma hipótese ?p (onde ‘p indica um conteúdo de crença, sendo ‘?’ o operador que indica o caráter hipotético do que cai sob o seu escopo).
     (2o) O momento da constatação do fato verificador !q (onde ‘!’ é o operador que indica o caráter de constatação imediata do fato que cai sob o seu escopo), cujo conteúdo é admitido como certo no sentido de que ele não pode ser falseado sob a assunção das informações disponíveis para o sujeito avaliador, servindo por isso de fazedor da verdade.
     (3o) O momento de verificação da correspondência, no qual há uma comparação entre o conteúdo da hipótese considerada no momento (1o) e o conteúdo factual considerado no momento (2o), ou seja, entre o p de ?p e o q de !q. Se uma igualdade de conteúdo é verificada, ou seja, se p = q, então podemos concluir ├p, ou seja, que p exprime um conteúdo de crença verdadeiro. Se a igualdade é refutada, se p q, então concluímos ├~p, ou seja, que p exprime um conteúdo de crença falso.

      Aplicando as idéias de isomorfismo estrutural e individuação semântico-criterial dos elementos do conteúdo à sugestão de Schlick é possível supor que o conteúdo da constatação, entendido como um conteúdo factual, seja igual ao conteúdo da hipótese sempre que os elementos individuados que constituem o conteúdo da hipótese têm relação biunívoca com os elementos individuados do fato observado.
     Isso explicaria o caso paradigmático da correspondência entre conteúdos de crenças singulares hipotéticas e o conteúdo de fatos observacionais. Contudo, algo do gênero poderia ser também um pressuposto necessário à explicação da correspondência entre hipóteses e fatos indiretamente observáveis. Suponhamos, por exemplo, que nós temos uma hipótese ?p que por alguma razão não possamos opor à observação. Mas suponhamos também que possamos fazer a observação factual verificadora das hipóteses r, s, t e u, que uma vez tornadas verdadeiras tornam em conjunção o conteúdo de crença q praticamente certo. Se agora q = p, a hipótese p passa a ser tornada verdadeira pelo conteúdo factual q, que tomamos como o seu fazedor da verdade sob a assunção de um certo conteúdo informacional subjacente.
     Também a verdade de crença gerais – universais e existenciais – se explicaria pela igualdade entre o seu conteúdo da hipótese e o conteúdo de conjuntos formados pelas respectivas conjunções e disjunções de conteúdos factuais, usualmente resultantes de inferências indutivas baseadas em fatos observacionais.
     Também um procedimento similar poderia ser aplicado às proposições das ciências formais, desbancando a idéia de que elas constituem o domínio ideal de aplicação da teoria coerencial da verdade. Como sei, por exemplo, que é verdadeiro o teorema de que na geometria euclideana a soma dos ângulos de um triângulo qualquer resulta em 180º? Ora, eu comparo o conteúdo dessa hipótese com o conteúdo resultante de uma prova baseada nos axiomas dessa geometria, ou seja, com o conteúdo factual abstrato resultante dessa prova, segundo o qual tal soma resulta sempre em 180º. Como o conteúdo da hipótese e o conteúdo do resultado da prova (ou seja, a evidência factual abstrata) são iguais, concluo que a hipótese é verdadeira!
     Finalmente – embora sob a forma de um caso-limite – sequer os enunciados analíticos precisariam ficar de fora da definição correspondencial. É possível dizer, por exemplo, que os enunciados analíticos “Chove ou não chove” e “Solteiros são não-casados” são verdadeiros porque correspondem aos respectivos fatos de que necessariamente ou chove ou não chove e de que nenhum solteiro pode ser casado. O que nos intitula a dizer isso? Ora, entendendo as proposições analíticas como as que são verdadeiras devido ao sentido de suas expressões componentes (pace Quine), considere como hipóteses sentenças como ?p1: “Chove ou não chove?”,  ?p2: “Solteiros são não-casados?”. Aqui a relação verificacional não é com o mundo fora do conteúdo de pensamento, mas com uma derivação convencional demonstrando que a estrutura lógica das sentenças em suas formas analisadas é a de tautologias. Assim, no caso de ?p1, que já se encontra em forma analisada, percebemos de imediato que a sua estrutura é a mesma de !q1, que é a constatação do princípio do terceiro excluído ou “p v ~p”. Como ?p2 (que significa “Tudo o que é solteiro é não-casado?”) não se encontra já em sua forma analisada, precisamos antes trazê-la a essa forma. Para tal, basta definir ‘solteiro’ como ‘homem (=H) adulto (=A) não-casado (=~C)’ e produzir a constatação factual tautológica “(x) ((Hx & Ax & ~Cx) → ~Cx)”, que é a de !q2, à qual, em sua estrutura lógica se iguala a ?p1. Ora, como as estruturas lógicas das frases p1 e p2 se demonstram respectivamente isomórficas às das frases q1 e q2 em suas formas analisadas, concluímos que os conteúdos dos pensamentos expressos por p1 e p2 são verdadeiros por corresponderem a conteúdos de constatações lógicas, ou seja, a fatos lógicos para os quais em nada contam os critérios semânticos de individuação. Isso explicaria porque, mesmo no caso de crenças analíticas, faz algum sentido dizer que a verdade consiste na correspondência com o fato.[16]

4. Outras questões se colocam. Uma delas é a de se saber como escolher os elementos do conteúdo da observação ou da hipótese. Longe de optarmos por uma solução metafísica como a de Wittgenstein no Tractatus, segundo a qual o mundo tem apenas uma única divisão em elementos atômicos simples, sugiro que optemos – inspirados pelo Wittgenstein das Investigações – por uma múltipla e variada divisão do mundo, estabelecida com base no contexto.[17] Ou seja: devemos admitir como elementos particulares, propriedades e relações estabelecidas pelas regras da prática lingüístico-verificacional – do jogo de linguagem cognitivo no qual a hipótese é verificada pela constatação do conteúdo factual. Por isso, quando digo que o livro está sobre a mesa, parece claro que os elementos participantes do conteúdo pensado são as representações (que não precisam ser naturalistas) do livro e da mesa, que a relação é mesmo a de estar sobre, e que uma análise subseqüente seria despropositada.
     A consideração do contexto motivador do ato verificacional também explica porque o conteúdo de observação (ou qualquer conteúdo factual verificador) precisa ser admitido como certo no sentido de ser considerado além da dicotomia verdadeiro-falso. Essa admissão de certeza (ainda que como logo veremos em princípio sempre revisável) é necessária, pois se não fosse assim perderíamos o fundamento para o nosso reconhecimento do que possa ser verdadeiro ou falso, acabando por cair em uma regressão ao infinito de verificações. Indispensável aqui é o conteúdo informacional subjacente à disposição daquele que julga, pois é a conformidade com esse conteúdo que fixa o conteúdo da constatação como possuindo, dentro da prática lingüístico-verificacional em questão, o status fundamentador de um fazedor da verdade, de um fato.
     Esse mesmo conteúdo informacional conhecido, cuja assunção torna o fato certo em uma dada prática, é o que também explica a falibilidade do ter por verdadeiro. Com efeito, quando o conteúdo da hipótese é constatado como sendo igual ao conteúdo factual de uma observação, dentro do ato verificacional motivado pelo conteúdo informativo dado, o conteúdo da observação deve ser assumido como não-falseável, como certo. Não obstante, do ponto de vista de uma outra prática lingüístico-verificacional, motivada por outro conteúdo informacional subjacente, esse mesmo conteúdo de observação poderá ser transformado no conteúdo de uma hipótese, a ser avaliada com base em algum outro fazedor de verdade, o qual será por sua vez capaz de falseá-la.
     Um exemplo esclarecerá o que quero dizer. Imagine que alguém enxerga um grande lago à distância. Na prática observacional usual o conteúdo de observação do proferimento “Lá se encontra um grande lago” deverá ser considerado certo – um fazedor da verdade, um fato. Mas se a pessoa estiver em um deserto e souber o suficiente sobre miragens, como o conteúdo informacional subjacente à observação por ela assumido se torna suficientemente diverso, a prática lingüístico-verificacional transforma-se na de se constatar uma simples ilusão ótica, não sendo mais aceito o primeiro conteúdo de crença como um fato verificador.
     A mais influente objeção a ser levantada nesse ponto é a de que proposições só podem ser comparadas com proposições e que ao compararmos proposições hipotéticas com conteúdos de constatações observacionais, mesmo que tidos como certos, permanecemos presos no interior de um círculo lingüístico que exigirá novas verificações, as quais serão inevitavelmente também intra-linguísticas etc. o que nos fará cair em uma redução ao infinito que tem como corolário o ceticismo epistêmico.
     Em resposta a essa objeção e ecoando a posição de Schlick, A.J. Ayer escreveu:

Nós rompemos o círculo ao usarmos nossos sentidos, ao realmente fazermos observações, disso resultando aceitarmos um enunciado e rejeitarmos outro. Claro que usamos a linguagem para descrever essas observações. Fatos não figuram no discurso, exceto como enunciados verdadeiros. Mas como poderia ser esperado que eles devessem fazê-lo?[18]

     Apesar de seu forte apelo ao bom senso, o argumento de Ayer parece contradizer uma outra idéia, também de bom senso, que é a de que a constatação é uma crença e de que o conteúdo de uma crença deve ser algo de natureza mental, já que nunca temos acesso direto e definitivo às coisas tal como elas são. A resposta que me parece mais plausível é a de que o conteúdo da constatação observacional possui uma face de Janus: ele pode ser visto, quando considerado dentro de um contexto de experiências psicológicas, como

(a) um conteúdo de crença psicológicamente determinado, susceptivel de ser falseado.

Mas ele também pode ser considerado, dentro de um contexto fisicalista, como:

(b) O que assumimos ser um conteúdo observacional independente de nós mesmos, o fazedor da verdade, o fato, sob o suposto da verdade do conteúdo informacional subjacente legitimizador da prática lingüístico-verificacional em questão.

O conteúdo da constatação observacional é visto por nós da maneira (b)  quando por meio dele desejamos confirmar uma suposição ou hipótese como sendo verdadeira. Já esse mesmo conteúdo é visto por nós da maneira (a) quando desejamos questionar uma pretensão de verdade, o que acontece sempre que percebemos que o conteúdo informacional subjacente se altera de modo a dar-nos razões para questionarmos o status desse conteúdo como sendo o de um conteúdo factual fazedor da verdade. Semelhante mecanismo é o que permitiria explicar a falibilidade de nossas constatações observacionais em seu papel fundamentador da verdade, admitindo generalização para outras formas de constatação.[19]

Verdade e coerência
As teorias coerenciais da verdade são os mais sérios concorrentes das teorias correspondenciais. Elas foram classicamente defendidas por Spinoza, Leibniz e Hegel e, em nossa época, por Brand Blanchard, Carl Hempel, Michael Dummett e Hilary Putnam. A idéia básica é a de que uma proposição é verdadeira quando é coerente com o conjunto de proposições constitutivas de nosso sistema de crenças. Suponha que alguém diga “Ontem à noite eu estava respirando”, ou então “Ontem à noite vi um fantasma”. A primeira proposição será imediatamente admitida como verdadeira e a segunda como falsa. Chegamos a essa conclusão, não por termos verificado se essas proposições correspondem ou não aos fatos, mas porque a primeira é coerente com o nosso sistema de crenças enquanto a segunda não.
     A teoria coerencial da verdade também se encontra aberta a conhecidas objeções. Uma delas é a de que essa teoria nos permite concluir que todas as crenças podem ser tornadas verdadeiras, pois todas elas serão coerentes com algum sistema de proposições concebível. Um conteúdo enunciativo expresso em um conto de fadas, por exemplo, é coerente com os outros enunciados do mesmo conto. Podemos, além disso, ter sistemas incomensuráveis entre si e, diante de uma crença que é consistente com um sistema e inconsistente com outro, não termos mais como decidir se ela é verdadeira ou falsa. Uma resposta viável seria a de negar que existam sistemas de crenças completamente incomensuráveis e considerar o sistema mais abrangente possível, aquele que inclui todos os outros – o sistema total de crenças – como paradigmático, avaliando nossos conteúdos de crença todos com relação a ele. Nesse caso, um subsistema de crenças – o sistema da realidade – se destacaria como o mais amplo e fortemente coerente, diversamente de subsistemas subsidiários, como o dos contos de fadas, pouco coerentes com o sistema da realidade e, portanto, para o sistema total de crenças inevitavelmente menos coerentes, o que se estenderia às crenças a ele pertencentes.
      Exemplos de atribuições de verdade baseadas na coerência com outras crenças são freqüentes nos tribunais, pois poucas vezes o crime é diretamente testemunhado. O seguinte exemplo nos ensina algo importante sobre os limites da teoria coerencial e sobre a sua relação com a teoria correspondencial. Logo após o seu casamento com a senhora Rose, o pastor norte-americano David foi internado em um hospital com fortes dores abdominais. Em pouco tempo foi concluído que o seguinte enunciado seria verdadeiro: p = “A senhora Rose tentou envenenar o reverendo David”. A razão dessa conclusão é que p é um enunciado coerente com os seguintes enunciados que se revelaram verdadeiros:

s: Foi encontrado no sangue de David uma grande quantidade de arsênico.
t: A senhora Rose tinha o costume de preparar sopinhas para o seu marido, levando-as até mesmo ao hospital.
u: Foram encontrados traços de arsênico na dispensa da casa da senhora Rose.
v: Exumaram-se os corpos dos três primeiros maridos da senhora Rose, todos mortos por causas desconhecidas, com a surpreendente descoberta de uma grande quantidade de arsênico em seus cabelos.

     O enunciado p é tornado verdadeiro por sua coerência com os enunciados s, t, u e v. O ponto a ser notado, porém, é que os enunciados s, t, u e v são verdadeiros por corresponderem a fatos publicamente observados. Ora, o que isso sugere é que a teoria coerencial não se sustenta sozinha. Deve ser por isso, aliás, que também nos parece lícito dizer que o enunciado p é verdadeiro porque corresponde ao fato da dita senhora ter envenenado o reverendo, mas que sabemos disso indiretamente, por sua coerência com outros conteúdos enunciativos que correspondem aos fatos que puderam ser observados. Assim, parece que a coerência não é um mecanismo independente, mas apenas um meio através do qual a correspondência se verifica. Ela é como os fios de uma rede de energia elétrica: eles não geram a energia, apenas a transferem. A coerência forma a rede de transferência da força veritativa gerada pela correspondência com a realidade a partir de conteúdos de crenças mais básicos, de um conteúdo de crença para outro, rumo ao interior do sistema de crenças.
     A aplicação da versão que defendo da teoria correspondencial ao exemplo dado torna esse ponto ainda mais evidente. Segundo essa versão, o que temos no início é a hipótese “?p”. Em seguida consideramos as crenças resultantes das verificações de s, t, u, e v. Depois, pela conjunção “s & t & u & v”, chegamos à conclusão indutiva de que o enunciado q, “A senhora Rose envenenou o reverendo David”, representa um fato, posto que exprime um conteúdo praticamente certo dentro das demandas da prática lingüístico-verificacional motivada pelo caso em questão. Ora, como p = q, ou seja, como a constatação !q tem o mesmo conteúdo do enunciado p que compõe a hipótese ?p, concluímos que p exprime um conteúdo de crença verdadeiro, ou seja, que é verdade que a senhora Rose envenenou o reverendo David. Disso podemos concluir que a coerência é apenas um mecanismo interdoxal pelo qual a correspondência se realiza. É por estar envolvida na correspondência que a coerência tem a ver com a verdade.

















[1] William James: Pragmatism: A New Name for Some (New York: Longman Green and co 1907), pp. 76-91.
Old Ways
[2] A formulação de C.S. Peirce, pelo menos, escapa a objeções fáceis, pois segundo ela a proposição verdadeira é a que se torna aceita pela comunidade científica como vantajosa em um processo histórico indeterminadamente longo (in the long run...). Mas é questionável se com isso ele analisa o conceito de verdade ou apenas uma propriedade que se espera que as proposições verdadeiras possuam.
[3] Gottlob Frege: “Der Gedanke”, in Beiträge zur Philosophie des deutschen Idealismus I, 2, 1918-19, pp. 58-77.
[4] Segundo a chamada teoria performativa da verdade, proposta (e depois abandonada) por P.F. Strawson, o predicado ‘...é verdadeiro’ é semanticamente, mas não performativamente, redundante, pois o que ele faz é recomendar a proposição. Ver “Truth”, in Logico-Linguistic Papers (London: Oxford University Press 1971).
[5] Peter Ramsey: “Facts and Propositions” (1927), in Philosophical Papers, ed. D.H. Mellor (Cambridge: Cambridge University Press 1990), pp. 38-39.

[6] O que se quer dizer com a frase em questão é que tudo o que ele afirma é verdadeiro não só para ele, mas também para nós, de modo que “...se ele afirma p então p” quer dizer também o mesmo que “...se ele afirma p então nós também podemos afirmar p ou dizer que p é verdadeiro”.
[7] Aristóteles: Metafísica G  7. 1011b, 26-7.
[8] Tomás de Aquino: Quaestiones Disputatae de Veritate, q. 1, a. 1.
[9] Ver meu artigo “O verdadeiro portador da verdade”, in C.F. Costa: Cartografias conceituais: uma abordagem da filosofia contemporânea (Natal: Edufn 2008).
[10] P.F. Strawson: “Truth”, in Logico-Linguistic Papers.
[11] Ver “Fatos empíricos”, in C.F. Costa: A Linguagem Factual (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1996). Ver J.L. Austin: “Unfair to Facts” in Philosophical Papers (Oxford: Oxford University Press 1979). Ver também a discussão entre J.R. Searle e Peter Strawson em The Philosophy of P.F. Strawson, ed. L.E. Hahn, The Library of Living Philosophers (New York: Open Court 1998), cap. 20.
[12] Uma teoria da correspondência como afiguração foi classicamente apresentada no Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein.
[13]  Há uma semelhança superficial entre essa fórmula e a fórmula disquotacional de Alfred Tarski. Mas esta última, dizendo que ““p” é verdadeira em L ≡ p”, escamoteia mais do que supera as questões filosóficas da teoria correspondencial que buscamos elucidar. Ainda assim, ela enfatiza corretamente o caráter metaconceitual da atribuição de verdade, que em minha definição também aparece como um predicado que conecta metalingüisticamente, pela correspondência, o pensamento ao mundo. (Alfred Tarsky: “The Semantic Conception of Truth”, Philosophy and Phenomenological Research, 4, 1944, 341-375).
[14] Note-se que há aqui uma curiosa proximidade conceitual entre a verdade e a existência em sua interpretação fregeana. Segundo esta última, a existência é a propriedade do conceito de sob ele cair ao menos um objeto. Note-se, porém, que nesse caso a existência deve ser também a propriedade do conteúdo conceitual de aplicar-se a ao menos um objeto, enquanto que a verdade do conteúdo da crença, do pensamento, sendo a sua correspondência com o fato, deve ser também a sua aplicabilidade ao fato (o pensamento aplica-se ao fato porque a ele corresponde).
[15] Moritz Schlick: “Das Wesen der Wahrheit nach der modernen Logik (1910)“, in Philosophische Logik (Frankfurt: Suhrkamp 1996).

[16] Para demonstrar a verdade dos princípios lógicos, Schlick propôs o procedimento inverso: para se obter a necessária apreciação intuitiva de sua aplicação, o princípio precisa ser comparado com um exemplo concreto. M. Schlick: “Das Wesen der Wahrheit nach der modernen Logik“, p. 82.
[17] Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen (Frankfurt: Suhrkamp 1983), sec. 46-48.
[18] “Truth”, in A.J. Ayer: The Concept of Person and Other Essays (London: Macmillan Press 1963) p. 186.
[19]  Ver “A pragmática da relação correspondencial”, IV-V, in C.F. Costa, A Linguagem Factual (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1996).

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